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quinta-feira, 24 de junho de 2021

Monja, Foco e Fé.




 Esta história remonta tempos imemoriais, paleolíticos, desde minha primeira decepção amorosa, broken heart, fora, fossa romântica, coração partido... Nestes momentos fatídicos, eu passava por todas as fases conhecidas e definidas pela psicologia da sofrência e do luto... Negação e isolamento. Raiva.  Barganha. Depressão e Aceitação, se as deusas assim consentissem. No entanto, RAU-É-VAR...eu sempre passava por um estágio muito peculiar, o do desejo de me isolar em um mosteiro qualquer, templo, sinagoga, castelo de greiskull, o que você conseguir nomear de coisa isolada e abnegada, serve. Eu pensava que o amor não era pra mim, que era melhor eu me dedicar exclusivamente à minha vida espiritual, me isolar, que o mundo não me merecia, que eu era too good to be ordinary. Hahahaha. O tempo passou e minha visão do amor também mudou um pouco. Ligeiramente. Pois se eu fosse querer me isolar agora, seria em um hotel boutique, com uma boa adega,  biblioteca, room service, pontos pra trocar por bugiganga, cozinha afetiva (não sei o que significa, mas todo mundo hoje se auto denomina algo afetivo, tem que ter isto pra ser cool, não se esqueça, por favor). Então, mudei, mas continuo a mesma. Também tenho vontade de me isolar, às vezes, ainda, quando me decepciono, mas não muito, menos decepção, menos isolamento, mais longe do Tibete,  mais perto da boutique, pontos por quilômetros de vantagens, menos meditação, mais vinho, fodam-se as deusas, streaming faz esquecer. Porém quando tive a oportunidade de provar, menu degustação, uma pitada de afeto e outra de solidão, ser monja sem o hábito, Claudinho sem Bochecha, eu me joguei. Nem tanto, pois passei meses percorrendo países no meu mochilão kamikaze pela Ásia, coletando informações sobre como seria esta experiência, tentando saber qual era o gosto do quiabo sem comer o quiabo, com baba, sem baba, com frango é tudo, nem é tão bom assim, sequinho é uma delícia e ainda assim decidir se comeria ou não comeria. O quiabo não. A experiência monja pocket, 11 days, Samara garantia estendida, Tailândia, vou-não-vou, quero mas tenho medo, por que não, mas pra que também? E a cada relato, sobre a experiência monja-pocket, eu mudava de ideia. É foda demais. Então não vou. É libertador. Então eu vou. Você quer morrer e não pode nem falar por 11 dias. Não vou mais. Ahhh, mas é uma experiência necessária pro real conhecer-se. Ahhh, por que não me disse antes, eu vou! E neste ping-pong Maria-não-vai-com-as-outras eu decidi ir até o norte da Tailândia, precisamente em Chiang Mai, passar pelo Wat, bater um papo com monjessess e monjeless e sentir o clima, e ver se minha intuição apitaria algo, né, tipo, vai cacete, faz logo essa porra, que saco, são somente 11 dias e não dá nada. A primeira cena que avistei ao chegar de Tuk-Tuk no templo, que ficava um bocado fora da cidade, foi a de um cidadão, cabelos brancos no ombro, sem ver pente há dias, vestido de branco dos pés à cabeça, literalmente, andando como se estivesse em câmera lenta, muito lenta, lentíssima, com as mãos entrelaçadas para trás. Analisando cada micro movimento de seus pés, como se eles fossem o parto de um dinossauro tirado da extinção pela engenharia genética. Pensei, que porra é essaaaa? Bem inspirada pelo meu lado espiritualista-preguiçoso-nihilista-debochado. Passei pela recepção. Encontrei uma monja que falava. Pelo menos com os turistas que queriam informações. Este templo é referência entre os estrangeiros que querem passar pela experiência Vipassana na Tailândia. São didáticos, organizados, tem pessoal que já está acostumado a ensinar o basicão pra leigos, já conhecem os nossos erros comuns, mancadas interculturais, problemas de coluna, hemorroidas, tagarelice, falta de foco, respeito, ou seja, já conhecem a putaria ocidental toda e tudo o que atrapalha o retiro e a retidão proposta. A monja me mostrou os vários prédios do wat, acomodações, falou o que eu precisaria levar, o dia que começaria, a rotina básica, minúcias e me deu um papel com as mesmas informações. 

Eu venho, pensei. É, eu venho sim. Não aguento mais turismo, turista, comida de restaurante, trem, ônibus, hostel, papo de mochileiro, wat, Buda de ouro, Buda de barro, Buda gigante, barulho, poluição, esquema pra arrancar grana de turista. Ihhhhhhh já deu. Vou fazer este retiro de uma vez por todas. Ver minhas aptidões para a disciplina, fazer votos pra mais uns meses e mudar de vida. Hahahaha. Voltei para a cidade, passei o fim de semana tranquila, sem expectativas maiores, deixei o excesso de bagagem no albergue mesmo. Comprei as 11 velas, 11 incensos, 11 flor-de-lótus, roupa branca, o que precisava. Cheguei antes da hora no dia marcado. Fui pra sala indicada. Monja simpática vai ensinar o básico da meditação andando. Olha pro pé, e pensa: querendo me mover, querendo me mover, querendo me mover. Daí levanta o pé devagarzinho, subindo, subindo, subindo. Daí vai vendo. Move o pé adiante, e pensa: movendo, movendo, movendo. Ah, mas lembrei que ontem eu comi manga. Então pensa: lembrando, lembrando, lembrando. E o pé? Ah, nesta hora não se mova. Só pense. Hummmm. Sei. Daí vai descer o pé? Descendo, descendo, descendo. Olha, que mágico. E se eu estiver preocupada com o que vou comer amanhã? Daí pensa: planejando, planejando, planejando. E não se mova. Olha, que interessante. E não se mova enquanto isto. Beleza. Por 15 minutos. Depois vocês se sentam e meditem por 15 minutos. Daí passam pra 20 de cada. Intercalando. E aumentam pra 25 de cada. Veio-me o maluco em mente. O grisalho despenteado que parecia um mané fazendo coreografia em manicômio. Esse mané agora seria eu. 

E as regras gerais? Fácil. Não falar. Nada. Com ninguém. A não ser que seja ultra necessário. Daí você fala o mínimo. Mas não será necessário. Sei. Não comer nada depois do meio-dia. Só pode beber. Até o dia seguinte, às 6h30 da manhã. Ok. Não ler. Não escrever. Não usar nenhum celular, computador, não ouvir música. Não matar. Nada. Nada. Nada mesmo. Pensei que essa seria a regra mais fácil. Mas depois descobri que não foi. Meditar, meditar, meditar. Andando e sentado. Andando e sentado. Andando e sentado. Começando com 5 horas por dia. Aumentando uma a cada dia. Mas gente, isso é fácil demais. Por que eu não vim antes? Contém dose cavalar de ironia. Hoje em dia a gente precisa sinalizar isto. E que a coisa tem afeto, também precisa sinalizar. Tempos modernos, gente. 

To pronta, pensei. Vamos lá. Foco. Disciplina. Nunca foi tão fácil ser monja. To dentro. Sentá la, levanta, anda, olha o pé, para o pé, pensa na briga da 5a série, toma consciência que lembrou do passado, pára o pé, desce o pé, senta no duro, medita caralho. Monja, foco e fé. 

Bem, então tá valendo. Vou pro quarto espartano. Uma cama de solteiro e uma mesa de escola velhinha. Mochila no chão. Coisas mundanas ficam guardadas. Tinha um edredom pois era inverno. Mas não tinha colchão. Então você escolhe, cobrir ou deitar no macio e passar frio? Não reclame, princesa, você veio aqui pra treinar sua mente, e não seu dragão. O frio na Tailândia pode ser como no Brasil, em algumas regiões. Tem sol de dia. Mas a água continua gelada. E de noite tem que se cobrir, aquecer. O banheiro era mínimo, mas era só meu. O chuveiro era frio, mas eu poderia tomar banho ao meio-dia, com sol mais quente. Boa vontade, meus irmãos. Vamos que vamos, porque tem muita hemorroida pra pipocar em 11 dias de bunda no chão e pernas dobradas. 

Rotina leve. Acorda com o gongo às 4 da manhã. Lava o rosto na aguinha gelada. Medita no quarto. Tá escuro lá fora. A galera da cozinha já meditou e tá lá cozinhando o café da manhã. Vegano. Que consistia em sopa de arroz e legumes e chá. Eu nunca conseguia levantar com o gongo e já colocava a soneca pra hora do café da manhã, porque aqui a lei da sobrevivência é forte. Seis da manhã, vai pra cozinha, senta nas perninhas, pega um folheto com os mantras e os cânticos, em letras do nosso alfabeto, sem tradução, mas com os sons. Canta, caraio. Senão não come, hein, moleque. Canta, canta, quero comer, canta mais, to com fome, canta, canta, limpa esse karma, sua imunda. Pronto. Fome matada. Saia de mansinho, encontre seu cantinho e ... medite, querida. Em pé, sentada, em pé, sentada. Mais uma vez. Às onze tem almocinho, mas só se você meditar, sem vergonha. Nem sempre eu conseguia. Eu queria andar pelo templo, ver os monges limpando as folhas do chão com suas vassouras imensas, ver as pessoas sentadas com suas caras plácidas, gente comum, que ia passar o dia pra meditar, falar com monjas e monges, e os moradores de lá, nos seus afazeres, rapa a cabeça da irmã com a lâmina, não quis ser monja? Agora, aguenta. Cada um nas suas funções e eu procrastinando. Eu meditava uma hora e minha mente já tinha energia pra dois dias. Eu não sabia o que fazer com tanta energia. E quanto mais energia, mais difícil era meditar. Daí eu não queria dormir também. Porque minha mente estava a mil. Cheia de ideias, insights, fervilhando, borbulhando, querendo criar, falar, ler, usar o intelecto. Mente dando nó na gente, ego querendo mostrar que tava ali, maroto. Criança rebelde querendo arrumar encrenca. Enquanto isto, o corpo doía e sentia as posições novas. Poderia ser do Kama Sutra, mas não. Eram mesmo das meditações andando e sentada. Dor física. Fome. Energia demais. Mente tagarela. Frio. E ainda tinha que dar satisfação pro monge mor, todos os dias, às 17. Na sala dele. Isto me deixava maluca. Primeiro porque era o mais próxima de religião que eu chegava, e ainda assim porque não havia como dissociar, no caso, o curso, a experiência Vipassana, das práticas religiosas deles. Depois porque era um templo. Com seus rituais, suas hierarquias, regras, e isto tudo era muito complicado pra mim. Senta na antessala. Espera os outros gringos falarem com monjão. Entra de joelhos. Vai até ele. Senta na bundinha. Nada de apontar o pé pro Buda que está atrás do monge. Uma heresia. Fica aí nesta posição. Aguenta, viado. Ah, e então? Meditou. Sim, monge. Quantas horas/ 5, 6, 7, 8? Cumpriu a tarefa? Sim, monge. Ganha um sache de cappuccino. Tá de parabéns. Eu nunca ganhava nada. Não conseguia passar das 6 horas. Me sentia um lixo ahahaha, hoje dou risada. Eu nunca meditava mais que meia hora na vida. Queria chegar lá, começar com 5. Aumentar uma hora por dia. Assim, como quem come uma banana a mais por dia. De buenas? Sim, queria. Mas meu corpo não aguentava. Eu me rebelava, sei lá qual parte minha. Era pura rebeldia. Queria sair gritando de noite, no silêncio do mosteiro. Pelada, se conseguisse. Queria matar as formigas que se enfileiravam no meu banheiro na hora do meu banho e me faziam encolher na quina, apertada, pra água não chegar nelas. Uma chacina naquelas formigas, era o que eu queria promover. Matar os pernilongos malditos que sobreviviam ao frio. Xingar a monja do mercadinho que implicava comigo toda vez que eu ia comprar algo, mesmo que fosse pra manhã seguinte, dizendo que eu não podia comprar biscoito, porque depois do meio dia não poderia comer nada. EU SEEEEIIIIIIIIII, MONJAAAAA. EU SEI SUA CARAIA DUMA MONJA, TO MAIS CARECA QUE VOCÊ DE SABER, SUA IMBECIL, MAS EU QUERO COMPRAR HOJE, PORQUE AMANHÃ VOCÊ PODE NÃO QUERER ABRIR ESSA BUÇANGA DE MANHÃ, COMO JÁ ACONTECEU E ME DEIXAR SEM BOLACHA RECHEADA DE GORDURA HIDROGENADA DE MANHÃ DE NOVO. Tendeu? Ela teve a pachorra de não me deixar comprar um yogurte de morango uma vez. Só porque tinha pedaços de morango. Sim. Sim. Sim. Verdade mesmo. Pra que você se digna a virar monja pra ser tão mesquinha, hein? Ficar careca e usar essas roupitchas laranjas com magenta não funcionam isoladamente, viu? Monja da peste. Ela disse que se tinha pe-da-ços de morango, mesmo que despedaçados, olha a hipocrisia, eu teria que mas-ti-gar e então eu estaria quebrando uma regra do retiro. EU ENGULO TUDO SEM MASTIGAR ENTÃO, MON AMOUUUUUURRRRR. Não pode, ela disse. E as más línguas dirão que estou sendo gordofóbica, mas ela era cheinha. E como alguém que não come das 12 às 6h30 da manhã seguinte, fica fofa? Foda-se. Falei. Suspeitas, eu tinha. Ela merece uma crônica toda, todinha, essa rapariga. Mas como dizia a minha amada vó Leontina, deixa o dedo que a unha vem, monja. 

Segui assim. Contando as horas, como Kid Abelha, negociando comigo mesma, driblando a fome da madrugada com suquinhos e iogurtes sem morangos em pedaços, discordando de mim mesma se eu usaria o edredom de colhão ou de cobertor, pensando em mentir pro monge mestre dos magos se eu tinha atingido o número de horas de meditação prescritas pra ganhar o sachê de cappuccino. Ou até mentindo que atingi o nirvana pra ganhar uma máquina da Nespresso, quem sabe este monge não cairia durão lá de susto e eu assumiria o trono, "A menina monja que destronou o monjão com seu nirvana, em 5 lições sem mestre".  Filme mais pop que As 7 Faces do Dr. Lao, clássico da minha infância na Sessão da Tarde. Não conversei com ninguém, e achei isto um livramento. Não matei, até onde sei. Não li, nem escrevi, nem comi fora da hora permitida. Sim, eu desejei o mal. Não posso dizer a quem. Mas vocês sabem. Ainda tem uma persona non grata que está neste roteiro, e que foi deixada de lado desta vez. Era a ajudante de Papai Noel. Uma monja alemã, carreirista, ahahaha, que era a secretária de carteira não assinada do monjão (este por sua vez era um doce, diga-se de passagem pra não desfazer minha fama de má). Essa monja era mais poderosa que secretária de médico. Do tipo que se apodera do posto e usa e abusa pra poder satisfazer seus delírios de grandeza. Ela conseguia tornar o momento da conversa com o monjão um momento corporativo. Uma competição consigo mesma. Uma ambição capitalista pra te fazer querer meditar mais que o coleguinha na sala de espera. Uma víbora. Hahaha. 

Se o saldo foi positivo? Como não? Olha que delícia de crônica relatada aqui. Quanta ironia, risadas, memórias afetivas, (será?), expansões da mente, do espírito, da porra toda. Eu refleti sim, sobre esta experiência, muitas vezes. Aprendi muito sobre mim, creiam-me. De uma maneira menos ortodoxa que o retiro previa, talvez, ou que as pessoas gostam de dizer que aprenderam. Aprendi da minha maneira. Do meu jeito mesmo. Que já tá ótimo. Hoje sei que faria de novo. Com outras expectativas, sou outra pessoa, com outra perspectiva de uma busca espiritual. 

Uma coisa eu tenho absoluta certeza: não quero ser monja. Nunca quis. Era só meu ego ferido querendo fugir da dor de um fora, ou uma decepção amorosa. Quero ser eu mesma. Mais amável, mais amada. Ou só mesmo do jeitinho que sou. Mas se não fosse minha imagem romantizada da vida monástica, como eu poderia ter ido parar no norte da Tailândia pra brigar com uma monja por pedaços de morango no iogurte?