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sábado, 26 de setembro de 2015

O Céu e o Inferno - de um Viajante.


Céu é upgrade. Inferno é voo cancelado, atrasado, desviado... Ou seja, o céu é pra poucos, privilegiados, sortudos, rabudos, ou bem relacionados. O céu do viajante não tem nada a ver com o céu divino, justo, indefectível e baseado na equação karma - dharma. O céu do viajante tem mais a ver com sorte, chance, oportunidade... é o famoso `se calhar´, português. Ou, como no aforismo de Nelson Rodrigues: "Com sorte, você atravessa o mundo, sem sorte você não atravessa a rua". Céu é amigo que te busca no aeroporto. É abraço na chegada, é plaquinha de zoeira com seu nome no desembarque. Inferno é chegar na madrugada, em um país desconhecido, no frio, no blecaute, sem saber direito pra onde ir. Céu é comer uma refeição caseira depois de dias ou semanas comendo em restaurantes, supermercados, feiras de rua. É também dormir em uma cama cheirosinha, no sofá-cama de um amigo ou conhecido, com lençóis macios e travesseiro na medida. Inferno é convencer seu pescoço que aquele travesseiro recheado de arroz, naquela aldeia remota da China, é melhor do que nada. E repousar sobre os grãos duros, deixando o cansaço do dia. Céu é quarto de hotel melhor que na foto. Inferno, bem... o exato oposto. (Como é que aqueles desgramados conseguiram um ângulo tão bom desta espelunca??!). O céu e o inferno do viajante não seguem uma linha lógica de raciocínio. Pelo simples fato de que, geralmente, o que se espera que seriam obviedades, como um quarto com lençóis limpos, ou  um restaurante que serve o que a foto do cardápio mostra, não passam de um embuste, um nó no bom-senso, uma piadinha de mau gosto. E outras, quando tudo parece perdido e ferrado, e desencarrilhado, aparece um ser inesperado, e salva o dia, o passeio, a pátria toda. É aquele senhorzinho que não fala uma única palavra de inglês, mas te pega pela mão pra mostrar que a estação de trem que você busca há horas, está logo ali, a poucos quarteirões de distância. É o taxista divertido que te faz morrer de rir pelo bom humor, gota do oceano do seu próprio mau humor depois de um dia de cão. É o casal da mesa ao lado que puxa conversa com você, no café, e acaba te dando dicas valiosas de um lugar incrível que você nem sonhava que existia, e que está logo ali. É o teu companheiro de beliche que divide um chocolate gostoso na noite chuvosa em que não dá pra sair do hostel. E as memórias boas, assim como as ruins, puxam umas às outras como numa corrente em que os elos estão bem conectados. Por isto até temo em voltar a falar do inferno, mas é também inevitável não pensar nele. Ainda mais que o tempo acaba por destilar o sabor amargo da experiência e torna tudo hilário, leve, quase bom. Inferno é dor de barriga. Dor de barriga em si é o inferno. Mas dor de barriga no meio de uma cidade barulhenta, caótica e com raros banheiros públicos, bom, daí é, como se diz, beijar o capeta. Agora, a quintessência dos infernos, a que daria inveja a Dante, é ter dor de barriga na fronteira da Bolívia com o Peru. Um apanhado de casas esparsas, onde você desce do ônibus e tem alguns momentos pra carimbar seu passaporte. Entre vendedores, viajantes, galinhas, lama. O único banheiro disponível é escuro, está alagado, tem uma porta que não cobre sua cabeça e... uma fila de viajantes te olhando. Uma mochila pesada nas costas, pés enfiados na água, tudo desafiando a lei da gravidade, a lei de Murphy, a lei dos resíduos sólidos, a lei de Newton, sei lá mais que lei! Ritual de iniciação. Bienvenido ao Peru. Céu é ter uma mesa com pessoas dos 5 cantos do mundo e achar muitas coisas em comum, descobrir humor em comum, e dar gargalhadas em línguas diversas. 
Sem dúvida alguma, o céu e o inferno nascem subjetivamente de uma percepção, de um humor, uma predisposição à entrega do momento. À uma alquimia que nos permite escolher transformar um imprevisto em algo divertido, um erro em compreensão, algo denso em leveza. É tarefa árdua. Pode ser desafiador demais. Isto me remete à crônica da diferença entre viajantes e turistas. Certamente, passar do inferno ao céu depende de uma variável rara e cara: uma atitude interna positiva. Por isto continuo fazendo das viagens minha religião. Minha prática espiritual. Pra evoluir ainda faltam milhas e mais milhas. Let´s check in!