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domingo, 11 de dezembro de 2016

Viajantes: personagens da vida real.

         Não raro, em viagens principalmente, pois é quando estamos mais abertos a olharmos para o mundo além do nosso próprio umbigo fedido, conhecemos pessoas sui generis. Aquelas que nem nossa imaginação mais inspirada poderia criar. Cujas personalidades, atitudes e histórias (de vida ou inventadas), colocam as fantasias de Macondo, em Cem Anos de Solidão, no chinelo. Na sola do chinelo. A cada bocado de quilômetros rodados, voados ou camelados, não ganhei milha alguma, mas conheci pessoas que me fizeram me sentir parte de um enredo mais intrincado, genial e imprevisível do que eu seria capaz de inventar com minha própria vida. Pois esta crônica é dedicada a cada uma delas. Que serão adicionadas cada dia mais, conforme minha memória traquinas  me presentear com seus achados. Os nomes destas pessoas foram mantidos os mesmos, assim como suas nacionalidades, embora eu pudesse mentir que eles foram alterados para proteger suas identidades. Portanto, qualquer semelhança com fatos reais, não, não, não é mera coincidência. 

Ram, sexo masculino, idade imperscrutável, da religião Sikh. Pushkar, Rajastão, Índia. 

       Descendo uma ladeira que daria no famoso e sagradérrimo lago desta charmosa cidade (que depois veio a mudar completamente) no noroeste da Índia, descíamos tranquilamente, Camila, minha irmã e eu. Era uma tarde ensolarada e preguiçosa. Detesto esta descrição. Não, a tarde não era preguiçosa. Eu e minha irmã sim. Então vou alterar. Era uma tarde ensolarada e eu e minha irmã, descíamos uma ladeira, preguiçosas (como sempre). As lojas neste ponto da rua já estavam rareando, quando este homem de turbante (típico dos seguidores da religião dele)  bigode preto grossssssso e lustroso, nos convida a um CHAI (chá), usando a estratégia mais manjada possível para atrair clientes. Come drink some tea, and look my shop. No, thanks. Yes, please. No, thanks. Yes, please. Ok. Tea. Metade do copo de açúcar e o resto de chai. E no segundo segundo de conversa, Ram já estava hipnotizado pela minha irmã. Parece que o bigode dele ficou mais preto e lussssstroso de repente. O turbante mais ereto. Ram mais falante e galanteador. Vendia prata, outras pedras preciosas. De certa forma, interessava à minha irmã, não necessariamente naquela hora, naquele dia, mas ele faria valer cada minuto do tempo dela ali, na companhia dele. O sultão do Rajastão chamava minha irmã de Kamela, olhando beeeeeem profundamente nos olhos dela, alisando o bigode, e tentando segurar sua atenção por mais um tempinho. Quando ia falar o nome dela, parava um segundo, fazia uma pose de importante, aumentava o tom de voz e olhava pra ela: Ka-me-laammmm. Bem pronunciadinho. Tudo intenso. Prata vai e prata vem. Fui ficando meio cansada, embora me divertisse com Ram. Ram queria se livrar de mim. hahahahahaha. Sim, queria. Tudo o que eu perguntava, que via na vitrine, pela parte de dentro, ele dizia rapidamente, ah, pode pegar ali e olhar. Tipo, te vira, guria, não me tira a atenção destes olhos azuis. Não foi nossa única visita à loja. Impossível que fosse. Aquilo virou um passeio, uma atração pra nós. Em uma destas visitas Ram foi buscar um saco enorme. Eram fotos dele. Feitas em estúdio, em sua maioria. Ram de frente, Ram de lado, Ram fingindo não ver a câmera, Ram com o olhar perdido no horizonte, Ram assim e Ram assado. Ram era muito vaidoso, sim? Ram e seu saco de fotografias me fazem sorrir. Pois e não é que, em outra visita falamos sobre nossa cidade natal, Ribeirão Preto, e ele pede pra escrevermos nosso endereço. O meu, no caso, pois Kamelammm morava na Inglaterra. Escrevi e ele olhou, olhou e foi buscar algo. Disse, olhem! Tenho uma amiga da mesma cidade de vocês... Não pude crer. Era verdade. Da rua abaixo da que eu morava na época. Disse ele que ela era fotógrafa e tinha esquecido um vestido lá. Deixado, acho. Não sei se esquecido. Me propus a levá-lo pra ela, mas acabamos nos esquecendo dele também. Anos depois, quando Kamelammm voltou a visitar Pushkar, Ram não morava mais lá. Tenho certeza de que a cidade ficou mais vazia sem ele. Alguns meses depois, conheci a tal fotógrafa e rimos muito das histórias de Ram.

Ohad, 22 anos, judeu, israelense, sul da China, a caminho de Jinghong. Ah, sexo masculino, alma, feminina. 

         Era um dia particularmente difícil pra mim. Despedi-me na véspera de alguém que tinha sido muito importante na minha viagem pela Ásia, e também na minha vida. Viajamos por mais de 2 meses, de aventuras e muita sintonia. Ainda estava abalada com a despedida quando fui para o ponto de ônibus nesta cidade chinesa, Kunming, que não podia deixar boas impressões e lembranças. Notei um rapaz franzino, vestindo sei lá o que era aquilo.... parecia uma fralda, algo como o que Gandhi costurava pra ele mesmo. Mas mais tosco. Ele esperava o mesmo ônibus, acreditei, Certamente ele era um mochileiro, mas não carregava exatamente uma mochila. Levava uma trouxa, pendurada no ombro. Pensei, que ser ímpar... mas eu não estava pra conversa. Viajaríamos por 12 horas em direção ao extremo sul da China, e eu nem bem sabia o que eu estava indo fazer lá. O ônibus chegou e era pra ser um ônibus leito. Bem, e era. De acordo com um país de mais de um bilhão de habitantes, de onde a cada porta que se abre, saem pelo menos 100 pessoas. As caminhas, ou seja, os leitos, eram como beliches. Havia 3 fileiras delas, emparelhadas. Ou seja, uma à direita, outra no meio e outra à esquerda. Eram frágeis e sem apoio, Se bobear, você cairia dela. Impossível dormir ali. Sentar tampouco, pois a altura do teto não permitia. Abaixo de mim, outro ser dormia e vários pegavam uma "beira" na cama do coitado. Ohad estava bem ao meu lado, flutuando como eu no ônibus sem conforto, se segurando pra não cair e fugindo das cabeças e cotovelos das pessoas que viajavam de pé, sim, de pé, fungando na nossa cara, cangote, virilha, sei lá. Apesar do meu azedume, começamos a interagir um pouco devido as dificuldades de nos manter no alto, da impossibilidade de dormir e do gelo do ar condicionado. Ao chegarmos em Jinghong, já havíamos combinado de arrumarmos um quarto, bangalô, o que fosse, pra dividirmos. Ohad queria caminhar enquanto procurávamos, mas eu estava moída. Insisti em arrumarmos um táxi e descobri que Ohad era o bicho mais pão-duro que eu poderia encontrar... e olha que conheci muito viajante pão-duro. Apenas nesta vez ele topou gastar com o táxi. Mas depois ele me faria economizar cada Yuan que gastamos na corrida. Menos história e mais biografia. Ohad era um menino puro, bem molecão, que tinha uma mancha no seu passado... abandonar o serviço militar israelense antes de cumprir os 2 anos. Bem, mesmo sabendo da exigência do serviço militar deles, não imaginava que esta atitude poderia ter consequências sérias pra ele. Como referências de trabalho ou qualquer uso do serviço público. Ohad não serviu nas fronteiras, não tinha que empunhar armas, nem trabalhar em um escritório sisudo e maçante. Ele era da banda de rock do exército. Tocava, ensaiava, divertia o pessoal aí de cima, do estresse. Mas mesmo assim para Ohad isto foi demais. Cara sensível, cheio de questionamentos existenciais. Não se encaixava no exército. E pagou o preço. Ia tentar ser ator. Torço pra que tenha conseguido. Mas Ohad e suas idiossincrasias não acabam aqui. Passamos apenas alguns dias dividindo o mesmo quarto, mas foram dias produtivos e curiosos. Ele meditava todas as noites sentado na cama, virado pra parede de madeira vagabunda. Olhava um ponto fixo. Meditação zen-budista, disse ele. Queria que eu aderisse a esta técnica. Insistiu. Mas Ohad, meu amor, eu já tenho a minha própria que uso há anos. Que é qual? Nenhuma. Então vai meditar assim, sim, sra. E lá ia eu, olhar pro ponto fixo na madeira. Pois foi assim que Ohad me contou a história de sua irmã, monja zen-budista. Ex-lésbica, casada espiritualmente com outra monja-zen budista. Viviam em um mosteiro acho que no Japão, mas se conheceram em um mosteiro sei lá onde. Mas Ohad, meu querido, não tem isto de ex-lésbica. E não tem isto de ser casada espiritualmente com outra monja. Tem, sim. Mas como? Tendo! Eu que era a limitada e não conhecia nada de monjas-ex-lésbicas-casadas-espiritualmente-com-outra-monja-ex-lésbica. E isto era muito sério pra ele, que admirava imensamente esta irmã, que pelo que percebi era uma pessoa muito carismática segundo os relatos dele. E devia ser muito convincente pra fazer alguém se casar com você sem poder fazer nada mais. E Ohad também tinha outra irmã mais mundana e engraçada e uma mãe também descolada que o encontraram em duas ocasiões na viagem dele pela Ásia. Eles fizeram trilhas, nadaram em cachoeiras, praias, acamparam, subiram montanhas, o escambau. Ohad tinha uma coleção bizarra de fotos da mãe e da irmã fazendo suas necessidades ao ar livre, ensandecidas com ele tentando fotografá-las enquanto se equilibravam. Ele tinha muito zelo por estas fotos. ???? Ohad sonhava em parir. Mudar de sexo, Ohad? Não, não. Apenas parir. Gestar e dar a luz. Ah, bom, entendi. Ohad tinha emagrecido 12 kilos durante a viagem. Fazia tudo que fosse possível à pé, comia o mínimo e economizava o máximo. Tinha um montão de grana guardada ainda. Mesmo depois de 6 meses na estrada.  Ficava muito bravo porque eu não comia toda a comida do prato, mas eu estava super triste ainda com minha despedida e não conseguia comer. Inventei uma dor de garganta. E ele, então deixa que eu como. Nestes dias juntos eu também acabei economizando uma boa grana. Ele tinha todos os esquemas de entrar nos parques naturais sem pagar, mesmo que isto implicasse em pedalar por dezenas de quilômetros a mais. Um dia, descolou carona pra nós em um caminhão de abacaxis. Os chineses ficaram com dó da gente ir lá atrás com os abacaxis e deixaram a gente ir com eles na frente. Surpreendente por 3 motivos: chinês não dá carona, chinês não quer saber de ajudar estrangeiro e eles não falavam uma única palavra de inglês. Ohad era um cara genial. 

La calva y la rastafari. Alemãs, jovens, perdidas por aí.

         Talvez em algum lugar do meu diário de bordo eu tenha anotado os nomes destas meninas alemãs com quem cruzei um par de vezes em cidades distintas. Como a própria descrição inicial diz, uma era careca e a outra rastafari. O nome cunhado em espanhol foi dado por Núria, uma amiga catalã que fiz depois de Ohad e que viria a viajar por muitas semanas comigo, de maneira intermitente, por vários países. Ela também se encontrou em distintos lugares com as duas, algumas vezes comigo junto, outras sozinha. Elas muito provavelmente eram um casal, mas em nenhuma das nossas animadas conversas isto foi mencionado. A primeira vez que as vi foi no bangalô-palafita que aluguei com Ohad. Eram nossas vizinhas de frente e estavam sempre sentadas no chão, na terra mesmo, debaixo de uma árvore que nos separava. Como muitos dos alemães da idade delas (pelo menos na minha experiência como viajante), elas se vestiam como mendigas. Não que meu guarda roupa fosse um exemplo de classe e bom gosto a esta altura, mas Ohad e elas se destacavam pelo despojamento anti-estético, por assim dizer. Nossa primeira conversa foi sobre uma aventura que elas estavam prestes a começar. Digamos que uma aventura baseada nos episódios de Jack Ass, onde o fim desastroso já está previsto. Elas iam comprar duas bicicletas que os locais usavam para transportar de tudo: botijão de gás, animais, lenha, capim, frutas, you-name-it e atravessar a fronteira até Laos. As bicicletas tinham design estúpido pra tal façanha. Eram pesadíssimas (só de olhar dava pra saber), feitas de ferro, rodas pequenas, e o compartimento para levar carga a deixava mais pesada ainda. Mas era pra carregar as mochilas delas ... ahhhh, bom, entendi agora. Meu espírito de aventureira masoquista me levou ao ímpeto de me convidar para ir junto. A coisa mais idiota que poderia me ocorrer. Mas eu queria algo que me tirasse da minha melancolia dos últimos dias. Nada melhor do que uma coisa ridícula destas, fadada ao fracasso. Ok, elas disseram. Mas você precisa comprar uma bike destas até amanhã à tarde, pois partiremos em 2 dias, bem cedo. Passei o dia seguinte percorrendo a cidade e querendo comprar a tal bicicleta suicida de algum morador. Não havia em lojas, não naquela cidade. Ninguém queria me vender, o que era óbvio pois estas pessoas as usavam pra trabalhar e o que uma estrangeira sem noção queria com uma bicicleta utilitária daquelas? Voltei desolada e contei à calva y à la rastafari meu insucesso. Elas me disseram que ainda havia uma chance. Se uma destas bikes delas tivesse conserto, elas levariam minhas bagagens e eu iria com uma bike comum. Elas pediram pra eu esperar até o fim da tarde, quando teriam resposta do cara que estava tentando o conserto. Nada feito. Fiquei frustrada, mas desejei-lhes boa viagem. Elas partiram assim. Uma bike normal e a outra utilitária levando a bagagem das duas. Uma semana depois, encontrei com as duas em uma cidade de Laos. Fui correndo pra saber como tinha sido a loucura. Durou meio dia. Acontece que a bike utilitária quebrou, o trajeto era montanhoso (eu bem que pensei nelas no caminho da travessia China-Laos,e me senti aliviada de não ter ido quando vi as montanhas), era impossível pedalar depressa e por muito tempo. Tiveram que acampar até o amanhecer e tomar um ônibus. Que pena, meninas... Fomos tomar uma cerveja na beira do rio. Ver o pôr-do-sol e celebrar a vida. Ainda encontraria com as duas em outras cidades, sem esperar, sem combinar, mas sempre um encontro inusitado e inspirador (elas e suas ideias que não paravam de brotar). 



Mais personagens da vida real, em breve. Nos próximos episódios.





terça-feira, 19 de julho de 2016

Marrocos, pisando no continente africano.

        A primeira visão que tive do táxi, assim que desembarquei em Marrakech, ou Marraquexe, na versão em português, foi de um menino, adolescente, pedalando sua bicicleta em alta velocidade, vestindo seu djellaba branco e chinelos. O que me impressionou foi que, mesmo com o trânsito relativamente pesado, ele pedalava e digitava em seu celular, sem tirar os olhos da tela. Tive vontade de gritar pra ele  (na minha cabecinha doente e cansada de vôos chatos e esperas longas), com sotaque do Piauí, não sei por quê: Oxe, menino, olhe pra frente que tu vai é arrebentar esta tua cabeça  numa tamareira. Passado o surto, olhei ao redor. Mais de 10 da noite, um calor seco e ainda muitas pessoas na avenida larga, margeada por um jardim longilíneo  e muito bem cuidado que continuava por quilômetros sem fim. Famílias, grupos de garotas e de garotos, crianças, conversando, sentados na grama, ou caminhando. Parecia propaganda de shopping center, não fossem as vestimentas muçulmanas e o toque oriental da vegetação. Bom, poderia ser propaganda de um shopping center no mundo islâmico, né? Tudo muito limpo, aparentemente seguro. E eu esperando o mesmo choque de quando aterrizei em Nova Delhi, anos antes, numa noite gelada no meio de um blecaute. Mas agora era diferente: sem sujeira, sem animais na rua, sem vaca, sem bode, sem cabra, sem tuk-tuk, sem (muita) poluição, sem ônibus capengas e coloridos... Acorda, Andréa, você não está na Índia. Mas que estranho, pensei que fosse chegar lá, de alguma forma não cartesiana, já que meu vôo era pro Marrocos... Mas por que as pessoas estavam até tão tarde na rua? Por que algumas pessoas usavam a camisola e outras não? Depois minha irmã - de novo ela nas crônicas, lá vem ela, lá vem ela - me ensinou que era djellaba e não camisola. Foto ilustra melhor, né? 




        Eu pouco havia me informado sobre o Marrocos. Sou destas. Meio por preguiça, meio por comodismo (já que minha irmã tinha me dito que estava com vários guias que ela emprestou da biblioteca de Barcelona - vim a saber depois que era tudo mentira, que ela pegou mas não leu, a ordinária), meio que porque eu amo ser surpreendida e não gosto de ficar criando expectativas. Três meios... mas pouca informação. O que pode ser uma benção ou uma catástrofe. O máximo que fiz foi reservar um riad (algo entre hotel e pousada) e combinar um transfer pra me buscar no aeroporto. Muitos progressos. Idade avançada e uma certa precaução por traumas anteriores operam milagres em alguém que detesta muito planejamento. 
        Pois o motorista me deixou direitinho bem em frente ... a um labirinto de ruas e ruelas estreitas e escuras em frente a uma entrada, já dentro da medina. Lá fui entregue às mãos de um homem de meia idade que se identificou como ... nada, na verdade ele pegou uma de minhas malas, sorriu e disparou labirinto adentro, falando a cada 5 palavras em árabe, uma em francês... Eu arrastava minha mala de rodinhas pelas pedras imperfeitas e pensava, caracoles, onde este cara tá me levando?. Escuras e estreitas, as ruazinhas da cidade antiga ainda tinham moradores passeando, crianças brincando e uma turista com cara de e.t (moi). Pensei nos filmes do 007 ou do Ultimato Bourne.  Eles bem que poderiam ter cenas de perseguição filmadas ali. Chegamos à uma das portas cheias de personalidade, que são as únicas coisas que diferenciam o emaranhado de paredes e muros do labirinto. Fatima, a faz tudo do riad, me esperava de pijama. Um charme. Me ofereceu chá de menta e especiarias e não parava de falar de tudo que eu poderia comprar, comer, gastar ali. E eu querendo uma cama. Bem, eu a consegui, momentos depois. Aparentemente limpa e confortável, mas que escondia seres terríveis que viriam a se alimentar do meu sangue (e da minha irmã, a partir do dia seguinte) deixando marcas que ainda não saíram do meu corpo. Bed bugs. Bad bugs, too. Not good bugs at all. Percevejos. Aqueles mesmo, da música, que fizeram combinação com as pulgas e fizeram serenata debaixo do meu colchão. Quando criança eu ouvia esta música grudenta e achava engraçado. Até que centenas de picadas infeccionadas começaram a aparecer depois do 3º dia por todo meu corpo... Um pesadelo. Fui obrigada a tomar antialérgicos e anti-inflamatórios por uns dias e andar como zumbi por Marraquexe, mal conseguindo pensar e caminhar. Não, não foi nada bom. Rien de rien. Viajei pela Ásia por 9 meses, dormi em camas de palha, em travesseiros de arroz, no chão de casas de tribos, em muquifos inomináveis... e ali, naquele riad arrumadinho, cheio de decorações bacaninhas, um iogurte divino, os demoniozinhos me esperavam. O calor de fim de primavera, girando pelos 40 e poucos graus, não ajudou muito. Isto certamente contribuiu pra minha experiência na cidade não ser das melhores. Nem as pedras que as crianças me jogavam me irritava tanto (ahahahahaha). Sim, elas ME jogavam pedras com uma certa frequência. Digamos que eu tentava interagir com elas mais do que elas queriam. Elas não aceitam fotos, não gostam que você tente falar com elas, brincar, sorrir, de preferência, nem olhe para elas. Mas eu virava e mexia me esquecia e dava bronca quando elas brigavam entre si, queria fazer uma gracinha ali e uma interaçãozinha acolá. Eu me virava, caminhava um pouco, e logo vinham pedras na minha direção. Uma vez duas meninas me jogaram pedras do alto de uma janela. Noutra vez, um menino me jogou um limão cascudo, porque acho que ele estava sem pedras no momento. Depois de tantas tentativas frustradas e empedradas, eu procurei me policiar. Minha irmã vivia me chamando a atenção e me lembrando de não interagir. Era difícil. Mas eu também não queria acabar tomando uns pontos na cachola. 
        Um outro fator que nos fez questionar a visita à Marraquexe foi o fato de termos chegado bem no meio do Ramadan. Bem, pra quem, como eu, tem conhecimentos parcos sobre o islamismo, ou qualquer outra religião, divido o pouco que aprendi. O Ramadan é um período de 30 dias que ocorre todos os anos em países muçulmanos. É, segundo entendi, como seria a quaresma dos cristãos (quando ela era levada a sério mesmo). É um tempo de jejuar, orar, fazer caridade, tempo de tolerância, e de se sensibilizar ao sofrimento alheio. No caso, através da fome, pois o jejum é rígido: começa às 3 da manhã e vai até o por do sol seguinte.  Detalhe: nem água se pode beber. Nos primeiros dias eu achei muito estranho mesmo um fato reincidente quando eu ia conversar com os marroquinos: o bafo. Mau hálito, pros eruditos. Pensei que fosse coincidência, no princípio. Depois pensei que fosse azar meu que só encontrava com pessoas bafudas. Depois pensei que fosse um problema nacional daqueles inexplicáveis, tipo, realismo fantástico de Cem Anos de Solidão. Mas não. Era apenas o Ramadan. Junta-se o jejum de sólidos com o jejum de líquidos. Cetose mais saliva espessa. Quem sou eu pra questionar os motivos pelos quais as pessoas seguem a risca as regras estabelecidas pelas crenças... mas achei bem sofrido. Pra nós, turistas, e pra eles. É por isto que os guias e blogs de viagem sugerem que você visite o país fora deste período. Não apenas pelo STAY AWAY: BAPHO. Mas porque as pessoas estão muito mais reclusas, muitos restaurantes fecham pro jantar, hahaha, não se encontra nem uma mísera cervejinha pra beber naquele calorão, você acaba tendo que se adequar aos horários deles. E limitações, de certa forma. Por haver um número reduzidíssimo de turistas, nos tornamos iscas mais vulneráveis aos que vivem do turismo. Donos de lojas, taxistas, agenciadores de hotéis, etc. Em Marraquexe eles chegaram a ser chatos, insistentes e até mesmo um bocado agressivos na aproximação. No entanto, foi em Essaouira, cidade litorânea charmosíssima, que vimos uma cena que beirou o hilário. Nas ruelas da medina (depois volto a falar delas), um homem tentava empurrar acomodação pra dois mochileiros meio perdidos. Eles recusaram educadamente, apesar da insistência do cara. Este, não aceitou o não muito bem. Gritou com sotaque mais forte impossível: "Tourrrrrists... rrrrrrrrubbish!" E quando nos viu rindo, gritou pra gente algo como, "é isto mesmo, turistas são lixo mesmo". Coitadinho, era a fome. Por isto, quando chegava por volta das 5 da tarde, já começávamos a ficar mais espertas: era a hora das brigas. Hora de descontar no coleguinha a fome que chegava no ponto máximo. Era um bando de homem à toa, nas praças e nos cafés (sentados sem comer nem beber nada, apenas com cara de cão pedinte), que se engalfinhavam aos berros, e com uma turma de cada lado tentando apartar. Mas logo haveria a reza antes da esperada refeição e eles precisariam estar limpinhos e calminhos. O breakfast, como eles chamam em inglês a  1ª refeição do dia, ocorre, como disse, quando o sol se põe. As famílias se reúnem, convidam amigos, preparam pratos típicos de Ramadan (como nós, com a sexta-feira da Paixão e a Páscoa). Fui convidada a uma destas refeições por uma amiga que fizemos lá. Comemos harira (uma sopa marroquina bem típica, que lembra sopa de vó), folhados recheados de carne (estes eu recusei, por não comer carne), uma farofa doce de frutas secas, tâmaras e figos secos, sucos de frutas frescas feito na hora, chá tipico (de menta com especiarias), azeitonas, e inúmeros doces de castanhas, mel e folheados. Alguns, receitas especiais apenas feitas pro Ramadan. Depois da refeição, não paravam de servir chá quentinho e doces, mais doces destes de confeitarias, em pedaços já. Pronto. Agora haveria a última reza do dia, a 5ª. Sim, prometo, a última. Os homens, em seu melhor djellaba indo às mesquitas, e as mulheres, não sei. Porque elas não podem entrar nas mesquitas. E se estiverem menstruadas, nem rezar podem. Sei que a Fatima, do riad, ia rezar, mas não sei onde. Algumas vezes vi algumas rezando do lado de fora da mesquita, na calçada, perto da entrada. Elas tem o dia certo pra ir lá e as horas definidas. Não é assim, quero ir à mesquita e fui. Nãããão. Tem que entrar no esquema. Mulé, né? Já viu. Aquela sofrência. Nem pra rezar pode direito. Eu, por um acaso, estava menstruada em Marraquexe e minha irmã me disse: olha, não fala que você está menstruada não, porque isto aqui é sujo, não podem saber. Claro. Obrigada, mana, Eu, fluente que sou em árabe, ia mesmo pedir informação assim, Bom dia. Por favor, eu estou menstruada e queria muito ir ao museu Palais Badi. O senhor poderia me dar as direções? Ou, por favor, uma garrafa de água mineral grande. Mas olha que estou menstruada, hein? hahaha. Só me divirto com minha irmã. E, pois. Comilança terminada, última reza cumprida. Hora do? Rolê. Rolegioso, como eu apelidei. Aquela galera, mesmo, todo mundo saindo das mesquitas e indo caminhar na rua. Um mar de camisolas e gorros. E lenços nas cabeças das mulheres. Todos felizes, amigos, família, crianças ( e pedrasssss) brincando nas praças, nos parquinhos, nas avenidas... Nada como uma barriguinha cheia, prosa com Deus em dia, dever cumprido. E olha que, sem colocar uma gota de álcool na boca, eles conseguiam fazer mais algazarra que muitos de nós bebendo. Passamos a usar a palavra algazarra porque eu me lembrei que um professor meu de primário (ensino fundamental, é isto hoje?) disse que as palavras começadas com o prefixo al- vinham do árabe. Então minha irmã e eu pensamos, se são árabes estão fazendo? al-gazarra. E isto ia até próximo das 3 da matina, quando soava uma sirene e todos se recolhiam às suas casinhas para NÃO fazer amor, porque nesta época não se pode. 
        No final das contas todas, creio que ter ido ao Marrocos nesta época específica me permitiu vivenciar costumes e tradições que talvez me tivessem passado desapercebidos em outra ocasião. Mas a viagem continua, e as crônicas sobre o Marrocos também. Breve, num cinema próximo à você. 

p.s. Compartilho o vídeo da música Festa dos Insetos, de Gilliard. Um clássico. 




segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Mais um tiquinho de Cuba, postagem incidental...


Já falei um pouco sobre minha viagem a Cuba em um post anterior, cujo assunto principal era uma distinção despretensiosa sobre Viajantes e Turistas.

Como há pouco eu me pus a comentar um vídeo postado por uma conhecida, no Facebook, acabei por gostar do que escrevi, pensei em dividi-lo aqui e enriquecer o blog um pouquinho, com mais um relato-pedacinho-do-mosaico-do-mundo-afora.

Pra contextualizar, o vídeo era uma jornalista (cheia de figuras de coxinhas de frango editadas sobre sua imagem, hahahahaha) e um cubano sendo entrevistado no Programa Roda Viva, TV Cultura. Nada demais. Foi editado de forma a enfatizar a resposta irreverente do entrevistado em detrimento da pergunta simplista da entrevistadora. (Ao meu ver, tudo ali foi simplista, mas divertido, de certa forma).


Enfim, to cut a long story short, vou usar meu comentário pra falar um tiquinho sobre Cuba. Ilha caribenha tão linda e propagada nos discursos pró e contra qualquer coisa política que to sem saco pra descrever... mas que todo mundo sabe sobre. 

"oi S., assisti ao vídeo com certa curiosidade... Não sou de nenhum partido, seja ele de

esquerda nem ao menos de direita, mas minhas ideias e crenças se identificam ao que se 

convencionou chamar de "esquerda", com ressalvas à cacoetes políticos. Estive em Cuba.

Viajei a ilha de norte e sul e do sul ao norte. Por terra. Como o transporte era escasso e

precário, viajei de carona, de ônibus, táxis clandestinos e até na carroceria de caminhões 

(um deles, de bagaço de laranja, que me deixou perfumada por dias! hahaha). Vi fome, vi 

dificuldades, vi opressão. O que percebi, pelas dezenas de pessoas que tive a chance de

conversar, é que, quem não tem alguma atividade no "mercado negro" ou não tem

parentes que mandem recursos do exterior, passam, sim, por apertos sérios. As "rações" 

que são distribuídas mensalmente a todos os cubanos são uma piada. Insuficiente e pobre 

em variedade. Ví com meus próprios olhos. As pessoas tem medo de falar uma palavra 

sequer contra o governo, porque há ouvidos delatores por toda a parte. Uma amiga médica,

triste com sua situação de trabalho, só desabafava comigo ao longo da praia, com muito

vento pra dissipar qualquer palavra que pudesse sair mais alta... Principalmente os mais

velhos, saudosos da revolução, mas envergonhados de dizer um "a" contra o regime, são 

os que mais sentem a pobreza disfarçada de igualdade. Não raro eles se aproximam, 

delicadamente, e aceitam o que você tiver pra compartilhar, seja um pedaço de pizza ruim

ou um refresco. Sejam uns pesos ou uma fruta. São frágeis, carentes, e um bocado

desamparados. O que acabou ficando de positivo em minha viagem, foram as recordações

de boa música e de dança solta em qualquer boteco, de norte a sul do país. Tradição que

me fez sorrir. Mas não foi suficiente pra me fazer querer voltar. Fica meu pequeno relato

. Não gosto de ideias pre-concebidas nem de uma nem de outra direção. Não quero ser

chata, mas senti que o vídeo foi bem pobre em informações. Pareceu-me um pequeno

escárnio contra a jornalista, que tampouco soube se colocar de forma inteligente.

Discussões sobre Cuba acabaram se tornando uma bandeira a favor da esquerda. Mas

acho que tornou-se um argumento muito pequeno. Aquilo lá, definitivamente, não é

bandeira pra ninguém. No entanto os cubanos seguem sendo um povo lindo, cheios de

talentos, alegres, fortes. A humanidade em nós está acima dos regimes que nos formatam

a alma,esta incorrigível, graças a deus. Abraço grande!