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terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Diálogos Possíveis (no Piauí).

         Decidi reunir alguns trechos de diálogos que ouvi e vivi nestes últimos meses aqui em Barra Grande, Piauí, e inventar outros baseados nas prosas por aqui. Embora o português do piauiense seja elegante por vezes, por outras é impossível decifrar os elos da corrente, discernir uma só palavra de frases inteiras.
     
       A primeira palavra que ouvi foi 'raleu ', para indicar ' valeu', mas ainda me levou um tempo pra perceber que todos trocam o v pelo r no começo das frases. Assim, a pergunta:  "Vânia, tu vai ver a vaca do vizinho do Vitor?", ficaria, como se conclui: "Rânia, tu rai rer a raca do rizinho do Rítor?".
Ou mesmo no meio da frase como em: "Tu tarra lá na rua barrendo?", bom, neste caso o ´varrendo´ virou ´barrendo´e não me perguntem o porquê. Há muitas variações entre a língua falada no próprio nordeste brasileiro, e o que eu apresento nada mais é que um microcosmo do microcosmo. Conforme for me lembrando, acrescentarei mais mini-diálogos à crônica.

   No mercadinho:
- Bom dia. Tem gelo?
- Tem. Mas derreteu.

    Na fila do banco:
_ Tu num vai morrê marrr nuuuuncaa!
_ Oiiiii?
_ Tu num vai morrê marrr nunca. Ainda hoje falei de tu!
_ Foooiiii? 


   No posto de saúde:  (Emergência em um sábado pela manhã.)
_ Bom dia. Preciso de uma vacina antirrábica. Fui mordida e arranhada por um gato de rua esta madrugada.
O auxiliar de enfermagem, única pessoa de plantão, em toda unidade:
_ O doutor deixou ordens expressas de não dar a vacina pra qualquer um. Tu observa o animal por 10 dias, se ele não adoecer e não morrer de raiva, tu não precisa da vacina.Viiiiiu?
_ Mas eu não conheço o animal!
_ Pois mas tu observa o animal. Se ele não adoecer e nem morrer de raiva, tu não precisa da vacina.
_ Mas o gato é de rua e eu posso nunca mais vê-lo!!! Ele é de rua, entendeu? Não tem casa e não tem dono e eu não sei onde ele está!
_ Mas somente pela observação do animal é que tu saberá se precisa da vacina ou não.
_ Bom, tá certo. E se ele morrer de raiva?
_ Tá, daí então tu vem aqui na segunda de manhã e peça uma vacina pro pessoal da imunização.
_ ???


No mercadinho:
_ Oi. Tem galão de água de 20 litros?
_ Tem não. Ainda não entregaram não.
_ Ah, que pena. 
_ Mas quando entregarem eu te levo lá.
_ Mas não vai ter ninguém em casa.
_ Eu deixo bem ali, na entrada. Viu?
_ Será?
_ Ninguém vai bulí não...
_ Comigo?
_ Não, minha filha, com o galão de água! 

Na vida:
_ Ô, mininu. Tu é casado, é?
_ Arrmamaria, nam.
_ Mas eu te vi com uma mulé e uma minina ontem, passeando.
_ Tu é abestada?

No bar:
_ Ei, este cara que tarra aí é teu amigo, é?
_ É não.
_ Pensei que fosse.
_ Arrmaria, esse daí não paga o sal... 

No táxi: (em Teresina)
_ A senhora conhece a tal de Xuxa?
_ Sim. O que é que tem a Xuxa?
_ Ela num é de Deus, não...
_ Ah, não? Por que o senhor acha que ela não é de Deus?
_ Imagine a senhora que ela diz assim quando termina o programa dela: " Até amanhã, se o ´cara lá em cima´ deixar ". 
_ Sei...
_ Pois uma mulé dessas num pode ser de Deus. Imagina dizer `o cara lá em cima´?
_ (Suspiro). 
_ Num é?
_ Pois eu acho melhor ela dizer o ´cara lá em cima´ do que o ´cara lá em baixo´.

No culto (do qual eu participava involuntariamente).
O pastor pregando:
_ Porque tudo tem uma consequência... tudo... quando a gente fuma um baseado, por exemplo... (pausa), fumava! 

Na vizinha da casa da minha prima, onde fico hospedada hoje em dia, chego pra buscar as chaves que me deixaram lá.
A vizinha para mim, toda esbaforida de calor que sempre sou:
- Abençoada.
Eu, nada religiosa, não quis ser grosseira, respondo:
- Amém.
Ela riu da minha cara. 
Depois entendi que ela disse, na verdade:
- Tá bem suada.
Raca réia.

FIM


Um vídeo de um ilustre morador de Barra Grande. 









sexta-feira, 6 de novembro de 2015

o Eclipse da Lua Vermelha

    



Lua Vermelha - Maria Bethânia

Link para o vídeo aqui





      Seria em si um fenômeno raro. Um eclipse total da lua. E uma superlua. Dois fenômenos em um. Diminuindo sua probabilidade e aumentando a expectativa dos amantes da astronomia. No século que antecedeu o ocorrido, o fato tinha acontecido apenas cinco vezes. Deveria repetir-se apenas 18 anos depois. A Lua de Sangue, como foi chamada. A superlua se deu pela distância reduzida entre a Terra e o astro, enquanto o eclipse adicionaria um toque de mistério ao espetáculo. 

      Naquele pequeno vilarejo, que desafiava a norma de crescimento acelerado das metrópoles que o circundavam, alguns poucos curiosos trocavam frases de interesse pelo acontecimento celeste. Não faltariam centenas, talvez milhares de fotos e registros inundando os meios de comunicação da época para alimentar a sede de conhecimento e saciar a vontade do homem de sentir-se mais próximo do evento. Este  ainda fascinava a civilização, milhares de anos após um trovão não amedrontar mais a ignorância das tribos como sendo um deus irado. 

      Mas em Mitotes, nome do vilarejo à beira mar em que a Lua de Sangue deixaria seu rastro superlativo, os ânimos foram variando entre euforia e indiferença à medida que o sol caía em sua baía peculiarmente banhada por um por-do-sol obtuso e contundente. Baía esta, não raramente frequentada por alguns cientistas de países remotos, em estudo dos seus exemplares raros de peixe-bois mutantes, que apresentavam olhos sobressalentes nas costas, e um tom furta cor na pele outrora escura. 

      Não havia entre os pescadores, moradores, turistas, cientistas, viajantes em pouso ligeiro, errantes, bêbados e drogados, prostitutas de beira de estrada, cegos ou visionários, alguém que pressentisse o que o fenômeno deixaria como rastro imperscrutável que estava prestes a acontecer. Apenas alguns animais, sim, sempre eles ligados às batidas do coração da mãe Terra, traduziam sua frequência como uma mudança de comportamento que passou desapercebida pelas pessoas de então, que utilizavam um aparelho acoplado à própria mão para medir seus passos, ver à distância, criar realidades paralelas, dirigir, pedalar, perder peso e até viajar. Estavam continuamente entretidos com estes aparelhos e deixavam de ver os próprios pés ao caminhar. O modo como os animais interpretaram os sinais da Lua Vermelha foi pelo acasalamento aleatório entre as espécies, não fazendo distinção entre fêmeas no cio, não mais em idade fértil ou ainda imaturas sexualmente. Os porcos na rua cruzavam com as cachorras, e os cachorros por sua vez, copulavam com as gatas; os ratos com as rãs, os asnos com as vacas. Mas ninguém viu isto. Ninguém via nada, pois os aparelhos acoplados às suas mãos os impediam. 

      E assim, às 22 horas, quando o eclipse se iniciava sem demora, sem titubear, um pequeno grupo foi reunindo-se à beira da praia, deixando seus aparelhos de lado, olhando pro céu depois de semanas ou até anos sem fazê-lo. Aquilo causou um estranhamento inicial e um silêncio seguiu uma histeria descontrolada. Eles se riam nervosamente e depois soltavam urros primitivos que eram intercalados com gritos desesperados. Alguns dançavam sem música, como se ouvissem uma sinfonia vinda das galáxias.Outros inventavam histórias e as contavam, mas ninguém as ouvia. Ainda havia os que apontavam pro céu como que narrando silenciosamente o que viam e sentiam.  Quando o eclipse acabou, quase todos se foram. Mas quase ninguém se lembrava do transe coletivo que acabava de acontecer. No dia seguinte, como que numa ressaca comunitária, um sorriso amarelo estava na expressão da maioria, mas ninguém sabia exatamente o porquê.

      Foi então que, restabelecida a rotina,  fenômeno supostamente deixado pra trás, começou-se a se ouvir notícias de uma, depois outra, depois outra e ainda muitas outras mulheres grávidas. Em princípio, poderia soar como uma mera coincidência. Destas de fim de novela das oito. Mas a insistência da notícia repetida começou a causar um desconforto e uma irritação. Doze, vinte, cem, centenas, e outras tantas dezenas complementares de mulheres grávidas. Virgens, idosas, inférteis, assexuadas, lésbicas, operadas e até mesmo uma que estava em coma por anos. Todas grávidas. Umas que estavam tentando a gravidez há anos, outras que nem mesmo estavam. Era um fato que não causava tanto estranhamento quanto ao como, mas muito mais pelas tantas quantas apareciam extremamente, indubitavelmente, irrefutavelmente grávidas. O prefeito, em estado de choque pelo fato que foi considerado um surto isolado e não uma epidemia, tomou medidas descabidas, imprecisas, romanescas. A cada 100 metros mandou instalar uns potes de barro, com uma barra de metal ao lado. Assim as grávidas com enjoo poderiam apoiar-se e vomitarem caso sentissem necessidade. Nas ruas de areia fofa mandou construir decks de madeira para que elas pudessem caminhar sem tanta dificuldade. Comprou incontáveis edições de livros sobre o que esperar da gravidez e os distribuiu por bares, cafés, restaurantes e lugares públicos do vilarejo. Começou a desenvolver uma paranoia por comprar, distribuir e desenvolver novos métodos contraceptivos que fossem eficazes mesmo em mulheres que não pudessem, a esta altura supostamente, engravidar. Ficou tão obcecado em evitar futuras gravidezes que se esqueceu de construir uma estrutura que pudesse acolher e cuidar das mães, e filhos, gerados de modo obscuro e improvável. Desta forma, houve um influxo incessante de Ongs, voluntários, órgãos internacionais, igrejas e até mesmo o governo de países próximos enviando hospitais de campanha para a chegada de tantos rebentos

      Ninguém, em absoluto, mesmo em suas mais febris especulações sobre o que teria acontecido, relacionou os dois fenômenos entre si: o eclipse da lua vermelha e o surto descabido das gravidezes. Até que, bebê após bebê, meninos e meninas, um após o outro, iam nascendo e exibindo no lado esquerdo do peito, pouco abaixo da clavícula, um sinal de nascença, vermelho, redondo, nítido. A Lua Vermelha.


quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Piauí - logo ali.






A primeira pergunta que meu irmão me fez quando soube que eu estava de mudança pro Piauí (aliás, eu e minha irmã, protagonista de numerosas das minhas crônicas) foi se estávamos fugindo da polícia ou algo parecido. Pra ele soou suspeito. Pra outras pessoas soou improvável. Pra outras ainda, uma aventura meio desmedida. Seguiu-se um questionário do qual eu sabia esparsas respostas. O Piauí tem litoral? Já é norte ou ainda é nordeste? O que vocês vão fazer tão longe? Mas você detesta calor...o que vai fazer em um lugar tão quente? Não sei. Me deixa! Só faltavam me perguntar que língua é falada aqui e que moeda usam. Eu mesma tentava levar as perguntas com bom humor. Talvez  porque eu nem tinha uma ideia muito clara, nem muito certa, nem muito madura do que viria fazer aqui. Sabia que era hora de sair da zona de conforto. E essa zona, no caso, deveria ser bem larga, pois pra sair dela eu tive que cruzar quase 3000 km desde casa até aqui. O que é mais divertido quando você vai fazer alguma mudança em sua vida, e começar um novo projeto, arriscar algo, enfim, sair da tal zona de conforto, é a projeção que as pessoas fazem das vontades (lê-se também frustrações,  medos, fantasias, inseguranças etc) delas mesmas na sua mudança. Toda sorte de comentários e toda gama de possibilidades - surreais e sensatas - vem à tona. Alguém me disse, se nada der certo, que pelo menos você volte casada. Ou rica, complementou expondo a minha miséria humana segundo sua visão. Ô, Dio Santo, o que é dar certo segundo as pessoas? Quem sai da zona de conforto pra dar certo? Você sai pra ser feliz! Isso já não é dar certo? Não, creio que estou sendo demasiado exigente com a vida! Ha. Certo ou errado, dentro da zona ou fora da zona, casada ou solteira, calor ou mais calor, eu vim. Percalços seguraram minha irmã e ela não pode vir comigo. Senão, não seria minha protagonista favorita de crônicas mal pagas desde a Índia, madam. Decolei sozinha. Aterrizei na madrugada e segui pra  uma rodoviária que me lembrou, como não poderia deixar de ser, algum lugar da Índia, mas em Teresina. Aguardei ali por algumas horas na ausência total de uma brisa que aliviasse o calor noturno. Tomei um ônibus em direção ao litoral, sim, há 90 km de litoral, aproximadamente. Cheguei em Parnaíba, sol alto, forte, e eu despreparada, de jeans, tênis. Uma astronauta na selva. Meus primos foram me buscar na rodoviária com um carro emprestado. Luxo só. E como toda viagem pra Parnaíba tem que ter, um amigo de carona, o carro cheio de compras de todos possíveis desejos e necessidades não supridas em Barra Grande. Destino final: Barra Grande. Litoral do Piauí. Já parte de um roteiro internacional de praticantes de kitesurfing. E outro roteiro criado pelos 3 estados em conjunto: Ceará, Piauí e Maranhão, chamado de Rota das Emoções, visando divulgar os lugares turísticos com potencial pra mais, na região. 
Em Barra Grande, o vento é a medida de todas as coisas. É a medida da alta temporada, onde ele sopra incessante e atrai kitesurfistas do mundo todo. Portanto, é a medida da economia local, da lotação das pousadas, restaurantes, mercadinhos, barracas de praia, charretes de burros, aluguel de equipamento, horas-aula dos instrutores... O vento é inversamente proporcional à percepção do calor. Sem o primeiro, não se tolera o segundo. É a medida do bem estar da galera, pouco munida de ares condicionados em suas casas alugadas dos nativos. O vento também é a medida da sujeira que invade estas mesmas casas, sem forro, sem proteção. Ele sopra sem piedade nas noites escuras e quietas do vilarejo, cobrindo  de areia escura cada milímetro que ele pode alcançar. Aqui sua pele acorda com uma camada áspera de areia, e também todo lençol, roupas, sapatos, objetos, sabonete... Quando o vento sai, pela manhã na alta temporada, ou pela tarde ainda na média, os kites entram na água, colorindo o céu invariavelmente azul. É um espetáculo alegre, do qual, por hora, sou apenas observadora. 
A cidade, melhor dizendo, o vilarejo, de uns 2000 habitantes, respira o kitesurfe. Recanto de pescadores, em sua essência e história, veio transformando-se recentemente conforme tem ganhado fama entre os praticantes do esporte. Ainda há uma forte atividade pesqueira aqui, parcialmente artesanal e individual, ainda vê-se barcos coloridos de madeira atracados à beira-mar. No entanto, já há alguma tensão pela disputa do espaço físico, onde haveria uma possível delimitação de territórios. Ainda o vento. Ele também é a medida, por vezes, da qualidade da internet. Qualidade da internet, aqui, parece um paradoxo quando as duas palavras estão escritas lado a lado. Ela vem via rádio de Parnaíba, cerca de 70 km daqui. E quando chega, toda esbaforida e descabelada, não costuma estar de bom humor. Se fosse uma pessoa, seria bipolar. Instável, irritadiça, uma louca (estes três adjetivos não vem da descrição de bipolar, mas de internet Barra Grande, muito prazer). Um pombo correio mal treinado é mais confiável que ela. Pena que os pombos-correios não estão em alta. Mas o vento, sim, ele é o personagem principal. Nem a beleza dos pores-do-sol hipnotizantes daqui protagonizam tantas histórias quanto o vento. Em noites calmas como a de hoje, em que uma leve e tímida brisa passa,  fica a sensação de que há algo mais leve que o vento pairando no ar. Misterioso mas insistente. Algo que flutua quase imperceptivelmente, mais escuro que a noite, e que o vento não ousa levar. 
Outros personagens de Barra Grande, neste estado de espírito que é o Piauí, virão a se apresentar nas próximas crônicas. 

Cenas cotidianas de ruas e estradas piauienses. 


Paisagem ao longo da pequena estrada entre Barra Grande e Cajueiro da Praia.


sábado, 26 de setembro de 2015

O Céu e o Inferno - de um Viajante.


Céu é upgrade. Inferno é voo cancelado, atrasado, desviado... Ou seja, o céu é pra poucos, privilegiados, sortudos, rabudos, ou bem relacionados. O céu do viajante não tem nada a ver com o céu divino, justo, indefectível e baseado na equação karma - dharma. O céu do viajante tem mais a ver com sorte, chance, oportunidade... é o famoso `se calhar´, português. Ou, como no aforismo de Nelson Rodrigues: "Com sorte, você atravessa o mundo, sem sorte você não atravessa a rua". Céu é amigo que te busca no aeroporto. É abraço na chegada, é plaquinha de zoeira com seu nome no desembarque. Inferno é chegar na madrugada, em um país desconhecido, no frio, no blecaute, sem saber direito pra onde ir. Céu é comer uma refeição caseira depois de dias ou semanas comendo em restaurantes, supermercados, feiras de rua. É também dormir em uma cama cheirosinha, no sofá-cama de um amigo ou conhecido, com lençóis macios e travesseiro na medida. Inferno é convencer seu pescoço que aquele travesseiro recheado de arroz, naquela aldeia remota da China, é melhor do que nada. E repousar sobre os grãos duros, deixando o cansaço do dia. Céu é quarto de hotel melhor que na foto. Inferno, bem... o exato oposto. (Como é que aqueles desgramados conseguiram um ângulo tão bom desta espelunca??!). O céu e o inferno do viajante não seguem uma linha lógica de raciocínio. Pelo simples fato de que, geralmente, o que se espera que seriam obviedades, como um quarto com lençóis limpos, ou  um restaurante que serve o que a foto do cardápio mostra, não passam de um embuste, um nó no bom-senso, uma piadinha de mau gosto. E outras, quando tudo parece perdido e ferrado, e desencarrilhado, aparece um ser inesperado, e salva o dia, o passeio, a pátria toda. É aquele senhorzinho que não fala uma única palavra de inglês, mas te pega pela mão pra mostrar que a estação de trem que você busca há horas, está logo ali, a poucos quarteirões de distância. É o taxista divertido que te faz morrer de rir pelo bom humor, gota do oceano do seu próprio mau humor depois de um dia de cão. É o casal da mesa ao lado que puxa conversa com você, no café, e acaba te dando dicas valiosas de um lugar incrível que você nem sonhava que existia, e que está logo ali. É o teu companheiro de beliche que divide um chocolate gostoso na noite chuvosa em que não dá pra sair do hostel. E as memórias boas, assim como as ruins, puxam umas às outras como numa corrente em que os elos estão bem conectados. Por isto até temo em voltar a falar do inferno, mas é também inevitável não pensar nele. Ainda mais que o tempo acaba por destilar o sabor amargo da experiência e torna tudo hilário, leve, quase bom. Inferno é dor de barriga. Dor de barriga em si é o inferno. Mas dor de barriga no meio de uma cidade barulhenta, caótica e com raros banheiros públicos, bom, daí é, como se diz, beijar o capeta. Agora, a quintessência dos infernos, a que daria inveja a Dante, é ter dor de barriga na fronteira da Bolívia com o Peru. Um apanhado de casas esparsas, onde você desce do ônibus e tem alguns momentos pra carimbar seu passaporte. Entre vendedores, viajantes, galinhas, lama. O único banheiro disponível é escuro, está alagado, tem uma porta que não cobre sua cabeça e... uma fila de viajantes te olhando. Uma mochila pesada nas costas, pés enfiados na água, tudo desafiando a lei da gravidade, a lei de Murphy, a lei dos resíduos sólidos, a lei de Newton, sei lá mais que lei! Ritual de iniciação. Bienvenido ao Peru. Céu é ter uma mesa com pessoas dos 5 cantos do mundo e achar muitas coisas em comum, descobrir humor em comum, e dar gargalhadas em línguas diversas. 
Sem dúvida alguma, o céu e o inferno nascem subjetivamente de uma percepção, de um humor, uma predisposição à entrega do momento. À uma alquimia que nos permite escolher transformar um imprevisto em algo divertido, um erro em compreensão, algo denso em leveza. É tarefa árdua. Pode ser desafiador demais. Isto me remete à crônica da diferença entre viajantes e turistas. Certamente, passar do inferno ao céu depende de uma variável rara e cara: uma atitude interna positiva. Por isto continuo fazendo das viagens minha religião. Minha prática espiritual. Pra evoluir ainda faltam milhas e mais milhas. Let´s check in! 

terça-feira, 16 de junho de 2015

Mais de Portugal.

          Ainda sobram anedotas sobre o querido Portugal. Difícil não sentir saudades das paisagens bucólicas e inesperadas do pequeno país ibérico. Vontade de comer sericaia, delicioso pudim obtido de um creme fofo feito de gemas, açúcar, leite, canela em pau, farinha e cascas de limão. E depois, com sorte, acompanhado das magníficas ameixas de Elvas e sua calda. Memórias torturantes. Vontade de comer o pão alentejano, de casca grossa, quentinho colocado sobre a mesa em um saquinho de linho para mantê-lo assim por mais tempo. E depois besuntá-lo de algum queijo de textura pastosa, como o queijo de Azeitão ou o serra da Estrrrrrreeeela, que me dá espasmos só de lembrar. Bacalhau à Brás (bacalhau desfiado, ovos mexidos e batata palha), Açorda à Alentejana (pão caseiro, ovos, coentro, alho, azeite), salada de polvo com coentro (polvo e coentro, hahahaha), sopa de grão com espinafre (grão de bico e espinafre), etc etc etc. Além de muita carne de caça, que eu não comi, porque não como e não quero comer.
           Os portugueses, assim como outros europeus, ainda caçam bastante. Em muitos restaurantes do interior é comum ver como decoração cabeças de veados, javalis, e outros animais de caça penduradas nas paredes. Também é comum encontrar clubes de caça em várias cidades. Este era um aspecto da cultura local que me incomodava muito, mas ... pronto, não há o que fazer a não ser registrar como parte de seus costumes ainda muito presentes. Adoraria ver um corno, manso ou não, cortado ao meio e empalhado, pendurado junto aos outros animais, alguns com cornos, outros sem. Wouldn´t it be lovely? 
         Mas voltando ao tema calórico e alimentar... os doces portugueses. Chamados de doces conventuais, porque basicamente se originaram nos conventos. Usavam-se as claras pra engomar as roupas e os hábitos de então. Portanto, o que fazer das gemas? Gemada tem limite! Assim, em um passe de mágica (quem disse isto?), nasceram receitas para driblar o desperdício. Adicione-se às gemas, açúcar, leite e o que mais houver. Não à toa, todos os doces conventuais levam açúcar e leite e gemas ou gemas, leite e açúcar. Hoje me pergunto, o que é feito das claras? Aonde andarão as claras? O que me dizem das claras?? Pego-me à noite, indagando. 
          Nem só de doces vivem os homens (já, as mulheres, creio que sobreviveriam), portanto há os vinhos. Os vinhos! Não tenho palavras para descrever os ... vinhos! Portanto, melhor bebê-los e me recolher na minha insignificante ignorância. Refeição sim e outra também, uma taça de vinho português só pode adicionar anos à nossa existência. Alvarinho, trajadura, touriga nacional, trincadeira, baga, castelão, aragonez, alicante bouschet, etc e tal que ninguém consegue memorizar mais que um par destes nomes peculiarmente curiosos. De ano em ano adicionado à existência, os rapazes portugueses tem em média 80 anos... os mais velhos... nem se computa. 
          A crônica de hoje foi uma pequena ode aos prazeres da mesa portuguesa. Uma pequena celebração aos pequenos prazeres da vida. Um brinde!

                                         
                      A RABANADA CLÁSSICA DO CAFÉ MAJESTIC, EM PORTO.
                 
   OLIVEIRAS CENTENÁRIAS NOS QUINTAIS DE PERAIS. NA BEIRA.

                                                
                                      BARRICAS DE CARVALHO, NA HERDADE DO MOUCHÃO.

                             VINHAS NA PODA DE INVERNO.




terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Pequeno manual nonsense do Português de Portugal.



Muitas pessoas gostam de fazer comparações entre o português bem lusitano e o nosso, safado, desviado, reinventado. ´Ah, quando fui à Portugal eu mal os entendia, preferia falar em inglês com eles`, disse-me uma conhecida. Achei um pouco de exagero e dei risada. Outra que ´está a morar cá´, como eles dizem (escrevo esta crônica aqui do Alentejo), disse ter tido dores de cabeça nas primeiras semanas de tanto se esforçar para entendê-los, já que por estar trabalhando, não podia perder detalhes que lhe seriam caros em sua comunicação com clientes e superiores. 
Confesso que tenho meus problemas em interpretá-los, muitas vezes. Não raro entendo coisas tão absurdas que chega a irritar meus amigos quando eu digo o que entendi. Mas mesmo no Brasil eu tenho um pouco deste problema, hahaha. Acho que é uma combinação de um pouco de surdez (não diagnosticada) com o fato de eu ser bem desligada e até um pouco criativa nas minhas interpretações. Pra que se limitar, hã? Há sem dúvida, uma enorme diversidade de sotaques aqui dentro. O do norte me soa mais difícil de entender. Parece-me mais fechado e arrastado. O daqui do Alentejo é bem cantado, eles repetem algumas palavras de modo que soem como interjeições : ´Ai eu, ai eu!`. É divertido, a meu ver, mas bonitinho também. Sei que língua e identidade cultural, nacional e sócio-econômica estão diretamente ligados e não tenho a menor intenção em ´caçoar´ dos portugueses e dos seus sotaques. Não mais do que eles mesmos o fazem, hahaha. Há programas humorísticos em que os atores imitam sotaques simplesmente impossíveis de se decodificar. São os extremos, obviamente. Mas se não me engano, também houve um filme brasileiro recente que foi lançado com legendas em português, não? Quanto aos sotaques do Açores e da Madeira, ainda não encontrei ninguém nesta viagem. Mas lembro-me de quando morei em Londres, não raramente eu me punha a ouvir pessoas do mundo todo conversando nos trens do metrô e demorava muito a reconhecer que era minha própria língua falada pelos imigrantes destas ilhas. Há um vídeo impagável no youtube que explica o sotaque do Açores para os portugueses do continente. Entre inúmeras diferenças citadas, minha favorita é a maneira dos açorianos chamarem refrigerante: ´água d´arroto´. O vídeo está intitulado: Os Açores explicados aos continentais.
Enfim, pra fazer justiça ao título desta crônica, vamos a uma breve lista de diferenças do léxico lusitano e do tupiniquim. 
Aqui banheiro é casa de banho e privada é sanita. Tomar um café é tomar uma bica. Quando você espirra, diz-se santinho! e se você for mulher, santinha! Academia de ginástica é ginásio. E a expressão muito usada para os estrábicos que tem ´um olho no peixe e outro no gato´, aqui tem o equivalente em ´um olho no burro e outro no cigano´, pra se ver o nível de confiança nos mesmos... Pinto, o órgão reprodutor masculino é pila. Ou pilinha, dependendo do dote do rapaz, hahaha. Ônibus é autocarro e trem é comboio. O verbo ´saber´ tem vários usos, dentre eles ´parecer-se com e ter gosto de´. Portanto se alguém diz que algo ´sabe a banana´, quer dizer que tem gosto de banana. Rata é um nome bem feio pro órgão reprodutor feminino, e broche é um nome bem feio pra sexo oral. Hahaha, quem não gosta de aprender besteira em outras línguas? Mesmo que esta língua seja a sua! Um puto, é um menino, criança, mas uma menina não é uma puta, somente menina mesmo. Ou miúda. Tomar uns copos é a expressão mais usada para tomar algo em um barzinho ou restaurante. Rabo ou cu é a nossa ´bunda´, ou melhor, a de vocês, a minha não. E não tem nenhuma conotação pesada. Se a pessoa tem o cu largo, ela tem a bunda gorda. Ai,agora eu fiquei um pouco em dúvida com estas palavras... de tanto tirar sarro destas diferenças eu acabo me confundindo às vezes e meus amigos já estão dormindo e eu não posso tirar dúvidas com eles...Bem feito pra mim, que tiro sarro de tudo e me confundo no final. Qualquer coisa eu publico uma errata depois... Não importa. Minha credibilidade não é das melhores mesmo hahaha e isto é uma crônica e não um tratado linguístico. 

Mas eu gostaria (aqui eles não usam o passado do pretérito, mas falam ´eu gostava´ao invés de ´eu gostaria´) de terminar com as gírias lusas: giro (ou gira, ou até mesmo o superlativo giríssimo\a). Fixe. Porreiro ou porreira. Pronto. Basicamente as gírias portuguesas para legal, bacana, interessante, belo, gostoso, divertido, etc etc etc são essas mesmas. Giro, fixe e porreiro. De vovozinhas à crianças bem pequenas... já ouvi todos usando estas gírias. E, ao que me consta, elas são bem antigas. Gosto de pensar que Pedro Álvares Cabral já comentava sobre as terras que avistava das caravelas Santa Maria, Pinta ou Nina, não sei, porque isto é irrelevante: ´Olhem que terras mais porreiras,ó, pá!´. E, posteriormente, Pero Vaz de Caminha teria escrito em suas cartas descrevendo o Brasil: ´Aqui são terras de pessoas muito fixes, que andam com suas vergonhas de fora, balangando ao vento, mas que aceitam trocar quinquilharias sem valor, por ouro, muito ouro, inxalá, que eu acho é giro!´. 

Portugal é fixe. Pra praticar mais um pouquinho e não correr o risco de me confundir como confundi bunda e rabo, que é um perigo!