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sexta-feira, 6 de novembro de 2015

o Eclipse da Lua Vermelha

    



Lua Vermelha - Maria Bethânia

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      Seria em si um fenômeno raro. Um eclipse total da lua. E uma superlua. Dois fenômenos em um. Diminuindo sua probabilidade e aumentando a expectativa dos amantes da astronomia. No século que antecedeu o ocorrido, o fato tinha acontecido apenas cinco vezes. Deveria repetir-se apenas 18 anos depois. A Lua de Sangue, como foi chamada. A superlua se deu pela distância reduzida entre a Terra e o astro, enquanto o eclipse adicionaria um toque de mistério ao espetáculo. 

      Naquele pequeno vilarejo, que desafiava a norma de crescimento acelerado das metrópoles que o circundavam, alguns poucos curiosos trocavam frases de interesse pelo acontecimento celeste. Não faltariam centenas, talvez milhares de fotos e registros inundando os meios de comunicação da época para alimentar a sede de conhecimento e saciar a vontade do homem de sentir-se mais próximo do evento. Este  ainda fascinava a civilização, milhares de anos após um trovão não amedrontar mais a ignorância das tribos como sendo um deus irado. 

      Mas em Mitotes, nome do vilarejo à beira mar em que a Lua de Sangue deixaria seu rastro superlativo, os ânimos foram variando entre euforia e indiferença à medida que o sol caía em sua baía peculiarmente banhada por um por-do-sol obtuso e contundente. Baía esta, não raramente frequentada por alguns cientistas de países remotos, em estudo dos seus exemplares raros de peixe-bois mutantes, que apresentavam olhos sobressalentes nas costas, e um tom furta cor na pele outrora escura. 

      Não havia entre os pescadores, moradores, turistas, cientistas, viajantes em pouso ligeiro, errantes, bêbados e drogados, prostitutas de beira de estrada, cegos ou visionários, alguém que pressentisse o que o fenômeno deixaria como rastro imperscrutável que estava prestes a acontecer. Apenas alguns animais, sim, sempre eles ligados às batidas do coração da mãe Terra, traduziam sua frequência como uma mudança de comportamento que passou desapercebida pelas pessoas de então, que utilizavam um aparelho acoplado à própria mão para medir seus passos, ver à distância, criar realidades paralelas, dirigir, pedalar, perder peso e até viajar. Estavam continuamente entretidos com estes aparelhos e deixavam de ver os próprios pés ao caminhar. O modo como os animais interpretaram os sinais da Lua Vermelha foi pelo acasalamento aleatório entre as espécies, não fazendo distinção entre fêmeas no cio, não mais em idade fértil ou ainda imaturas sexualmente. Os porcos na rua cruzavam com as cachorras, e os cachorros por sua vez, copulavam com as gatas; os ratos com as rãs, os asnos com as vacas. Mas ninguém viu isto. Ninguém via nada, pois os aparelhos acoplados às suas mãos os impediam. 

      E assim, às 22 horas, quando o eclipse se iniciava sem demora, sem titubear, um pequeno grupo foi reunindo-se à beira da praia, deixando seus aparelhos de lado, olhando pro céu depois de semanas ou até anos sem fazê-lo. Aquilo causou um estranhamento inicial e um silêncio seguiu uma histeria descontrolada. Eles se riam nervosamente e depois soltavam urros primitivos que eram intercalados com gritos desesperados. Alguns dançavam sem música, como se ouvissem uma sinfonia vinda das galáxias.Outros inventavam histórias e as contavam, mas ninguém as ouvia. Ainda havia os que apontavam pro céu como que narrando silenciosamente o que viam e sentiam.  Quando o eclipse acabou, quase todos se foram. Mas quase ninguém se lembrava do transe coletivo que acabava de acontecer. No dia seguinte, como que numa ressaca comunitária, um sorriso amarelo estava na expressão da maioria, mas ninguém sabia exatamente o porquê.

      Foi então que, restabelecida a rotina,  fenômeno supostamente deixado pra trás, começou-se a se ouvir notícias de uma, depois outra, depois outra e ainda muitas outras mulheres grávidas. Em princípio, poderia soar como uma mera coincidência. Destas de fim de novela das oito. Mas a insistência da notícia repetida começou a causar um desconforto e uma irritação. Doze, vinte, cem, centenas, e outras tantas dezenas complementares de mulheres grávidas. Virgens, idosas, inférteis, assexuadas, lésbicas, operadas e até mesmo uma que estava em coma por anos. Todas grávidas. Umas que estavam tentando a gravidez há anos, outras que nem mesmo estavam. Era um fato que não causava tanto estranhamento quanto ao como, mas muito mais pelas tantas quantas apareciam extremamente, indubitavelmente, irrefutavelmente grávidas. O prefeito, em estado de choque pelo fato que foi considerado um surto isolado e não uma epidemia, tomou medidas descabidas, imprecisas, romanescas. A cada 100 metros mandou instalar uns potes de barro, com uma barra de metal ao lado. Assim as grávidas com enjoo poderiam apoiar-se e vomitarem caso sentissem necessidade. Nas ruas de areia fofa mandou construir decks de madeira para que elas pudessem caminhar sem tanta dificuldade. Comprou incontáveis edições de livros sobre o que esperar da gravidez e os distribuiu por bares, cafés, restaurantes e lugares públicos do vilarejo. Começou a desenvolver uma paranoia por comprar, distribuir e desenvolver novos métodos contraceptivos que fossem eficazes mesmo em mulheres que não pudessem, a esta altura supostamente, engravidar. Ficou tão obcecado em evitar futuras gravidezes que se esqueceu de construir uma estrutura que pudesse acolher e cuidar das mães, e filhos, gerados de modo obscuro e improvável. Desta forma, houve um influxo incessante de Ongs, voluntários, órgãos internacionais, igrejas e até mesmo o governo de países próximos enviando hospitais de campanha para a chegada de tantos rebentos

      Ninguém, em absoluto, mesmo em suas mais febris especulações sobre o que teria acontecido, relacionou os dois fenômenos entre si: o eclipse da lua vermelha e o surto descabido das gravidezes. Até que, bebê após bebê, meninos e meninas, um após o outro, iam nascendo e exibindo no lado esquerdo do peito, pouco abaixo da clavícula, um sinal de nascença, vermelho, redondo, nítido. A Lua Vermelha.