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domingo, 11 de dezembro de 2016

Viajantes: personagens da vida real.

         Não raro, em viagens principalmente, pois é quando estamos mais abertos a olharmos para o mundo além do nosso próprio umbigo fedido, conhecemos pessoas sui generis. Aquelas que nem nossa imaginação mais inspirada poderia criar. Cujas personalidades, atitudes e histórias (de vida ou inventadas), colocam as fantasias de Macondo, em Cem Anos de Solidão, no chinelo. Na sola do chinelo. A cada bocado de quilômetros rodados, voados ou camelados, não ganhei milha alguma, mas conheci pessoas que me fizeram me sentir parte de um enredo mais intrincado, genial e imprevisível do que eu seria capaz de inventar com minha própria vida. Pois esta crônica é dedicada a cada uma delas. Que serão adicionadas cada dia mais, conforme minha memória traquinas  me presentear com seus achados. Os nomes destas pessoas foram mantidos os mesmos, assim como suas nacionalidades, embora eu pudesse mentir que eles foram alterados para proteger suas identidades. Portanto, qualquer semelhança com fatos reais, não, não, não é mera coincidência. 

Ram, sexo masculino, idade imperscrutável, da religião Sikh. Pushkar, Rajastão, Índia. 

       Descendo uma ladeira que daria no famoso e sagradérrimo lago desta charmosa cidade (que depois veio a mudar completamente) no noroeste da Índia, descíamos tranquilamente, Camila, minha irmã e eu. Era uma tarde ensolarada e preguiçosa. Detesto esta descrição. Não, a tarde não era preguiçosa. Eu e minha irmã sim. Então vou alterar. Era uma tarde ensolarada e eu e minha irmã, descíamos uma ladeira, preguiçosas (como sempre). As lojas neste ponto da rua já estavam rareando, quando este homem de turbante (típico dos seguidores da religião dele)  bigode preto grossssssso e lustroso, nos convida a um CHAI (chá), usando a estratégia mais manjada possível para atrair clientes. Come drink some tea, and look my shop. No, thanks. Yes, please. No, thanks. Yes, please. Ok. Tea. Metade do copo de açúcar e o resto de chai. E no segundo segundo de conversa, Ram já estava hipnotizado pela minha irmã. Parece que o bigode dele ficou mais preto e lussssstroso de repente. O turbante mais ereto. Ram mais falante e galanteador. Vendia prata, outras pedras preciosas. De certa forma, interessava à minha irmã, não necessariamente naquela hora, naquele dia, mas ele faria valer cada minuto do tempo dela ali, na companhia dele. O sultão do Rajastão chamava minha irmã de Kamela, olhando beeeeeem profundamente nos olhos dela, alisando o bigode, e tentando segurar sua atenção por mais um tempinho. Quando ia falar o nome dela, parava um segundo, fazia uma pose de importante, aumentava o tom de voz e olhava pra ela: Ka-me-laammmm. Bem pronunciadinho. Tudo intenso. Prata vai e prata vem. Fui ficando meio cansada, embora me divertisse com Ram. Ram queria se livrar de mim. hahahahahaha. Sim, queria. Tudo o que eu perguntava, que via na vitrine, pela parte de dentro, ele dizia rapidamente, ah, pode pegar ali e olhar. Tipo, te vira, guria, não me tira a atenção destes olhos azuis. Não foi nossa única visita à loja. Impossível que fosse. Aquilo virou um passeio, uma atração pra nós. Em uma destas visitas Ram foi buscar um saco enorme. Eram fotos dele. Feitas em estúdio, em sua maioria. Ram de frente, Ram de lado, Ram fingindo não ver a câmera, Ram com o olhar perdido no horizonte, Ram assim e Ram assado. Ram era muito vaidoso, sim? Ram e seu saco de fotografias me fazem sorrir. Pois e não é que, em outra visita falamos sobre nossa cidade natal, Ribeirão Preto, e ele pede pra escrevermos nosso endereço. O meu, no caso, pois Kamelammm morava na Inglaterra. Escrevi e ele olhou, olhou e foi buscar algo. Disse, olhem! Tenho uma amiga da mesma cidade de vocês... Não pude crer. Era verdade. Da rua abaixo da que eu morava na época. Disse ele que ela era fotógrafa e tinha esquecido um vestido lá. Deixado, acho. Não sei se esquecido. Me propus a levá-lo pra ela, mas acabamos nos esquecendo dele também. Anos depois, quando Kamelammm voltou a visitar Pushkar, Ram não morava mais lá. Tenho certeza de que a cidade ficou mais vazia sem ele. Alguns meses depois, conheci a tal fotógrafa e rimos muito das histórias de Ram.

Ohad, 22 anos, judeu, israelense, sul da China, a caminho de Jinghong. Ah, sexo masculino, alma, feminina. 

         Era um dia particularmente difícil pra mim. Despedi-me na véspera de alguém que tinha sido muito importante na minha viagem pela Ásia, e também na minha vida. Viajamos por mais de 2 meses, de aventuras e muita sintonia. Ainda estava abalada com a despedida quando fui para o ponto de ônibus nesta cidade chinesa, Kunming, que não podia deixar boas impressões e lembranças. Notei um rapaz franzino, vestindo sei lá o que era aquilo.... parecia uma fralda, algo como o que Gandhi costurava pra ele mesmo. Mas mais tosco. Ele esperava o mesmo ônibus, acreditei, Certamente ele era um mochileiro, mas não carregava exatamente uma mochila. Levava uma trouxa, pendurada no ombro. Pensei, que ser ímpar... mas eu não estava pra conversa. Viajaríamos por 12 horas em direção ao extremo sul da China, e eu nem bem sabia o que eu estava indo fazer lá. O ônibus chegou e era pra ser um ônibus leito. Bem, e era. De acordo com um país de mais de um bilhão de habitantes, de onde a cada porta que se abre, saem pelo menos 100 pessoas. As caminhas, ou seja, os leitos, eram como beliches. Havia 3 fileiras delas, emparelhadas. Ou seja, uma à direita, outra no meio e outra à esquerda. Eram frágeis e sem apoio, Se bobear, você cairia dela. Impossível dormir ali. Sentar tampouco, pois a altura do teto não permitia. Abaixo de mim, outro ser dormia e vários pegavam uma "beira" na cama do coitado. Ohad estava bem ao meu lado, flutuando como eu no ônibus sem conforto, se segurando pra não cair e fugindo das cabeças e cotovelos das pessoas que viajavam de pé, sim, de pé, fungando na nossa cara, cangote, virilha, sei lá. Apesar do meu azedume, começamos a interagir um pouco devido as dificuldades de nos manter no alto, da impossibilidade de dormir e do gelo do ar condicionado. Ao chegarmos em Jinghong, já havíamos combinado de arrumarmos um quarto, bangalô, o que fosse, pra dividirmos. Ohad queria caminhar enquanto procurávamos, mas eu estava moída. Insisti em arrumarmos um táxi e descobri que Ohad era o bicho mais pão-duro que eu poderia encontrar... e olha que conheci muito viajante pão-duro. Apenas nesta vez ele topou gastar com o táxi. Mas depois ele me faria economizar cada Yuan que gastamos na corrida. Menos história e mais biografia. Ohad era um menino puro, bem molecão, que tinha uma mancha no seu passado... abandonar o serviço militar israelense antes de cumprir os 2 anos. Bem, mesmo sabendo da exigência do serviço militar deles, não imaginava que esta atitude poderia ter consequências sérias pra ele. Como referências de trabalho ou qualquer uso do serviço público. Ohad não serviu nas fronteiras, não tinha que empunhar armas, nem trabalhar em um escritório sisudo e maçante. Ele era da banda de rock do exército. Tocava, ensaiava, divertia o pessoal aí de cima, do estresse. Mas mesmo assim para Ohad isto foi demais. Cara sensível, cheio de questionamentos existenciais. Não se encaixava no exército. E pagou o preço. Ia tentar ser ator. Torço pra que tenha conseguido. Mas Ohad e suas idiossincrasias não acabam aqui. Passamos apenas alguns dias dividindo o mesmo quarto, mas foram dias produtivos e curiosos. Ele meditava todas as noites sentado na cama, virado pra parede de madeira vagabunda. Olhava um ponto fixo. Meditação zen-budista, disse ele. Queria que eu aderisse a esta técnica. Insistiu. Mas Ohad, meu amor, eu já tenho a minha própria que uso há anos. Que é qual? Nenhuma. Então vai meditar assim, sim, sra. E lá ia eu, olhar pro ponto fixo na madeira. Pois foi assim que Ohad me contou a história de sua irmã, monja zen-budista. Ex-lésbica, casada espiritualmente com outra monja-zen budista. Viviam em um mosteiro acho que no Japão, mas se conheceram em um mosteiro sei lá onde. Mas Ohad, meu querido, não tem isto de ex-lésbica. E não tem isto de ser casada espiritualmente com outra monja. Tem, sim. Mas como? Tendo! Eu que era a limitada e não conhecia nada de monjas-ex-lésbicas-casadas-espiritualmente-com-outra-monja-ex-lésbica. E isto era muito sério pra ele, que admirava imensamente esta irmã, que pelo que percebi era uma pessoa muito carismática segundo os relatos dele. E devia ser muito convincente pra fazer alguém se casar com você sem poder fazer nada mais. E Ohad também tinha outra irmã mais mundana e engraçada e uma mãe também descolada que o encontraram em duas ocasiões na viagem dele pela Ásia. Eles fizeram trilhas, nadaram em cachoeiras, praias, acamparam, subiram montanhas, o escambau. Ohad tinha uma coleção bizarra de fotos da mãe e da irmã fazendo suas necessidades ao ar livre, ensandecidas com ele tentando fotografá-las enquanto se equilibravam. Ele tinha muito zelo por estas fotos. ???? Ohad sonhava em parir. Mudar de sexo, Ohad? Não, não. Apenas parir. Gestar e dar a luz. Ah, bom, entendi. Ohad tinha emagrecido 12 kilos durante a viagem. Fazia tudo que fosse possível à pé, comia o mínimo e economizava o máximo. Tinha um montão de grana guardada ainda. Mesmo depois de 6 meses na estrada.  Ficava muito bravo porque eu não comia toda a comida do prato, mas eu estava super triste ainda com minha despedida e não conseguia comer. Inventei uma dor de garganta. E ele, então deixa que eu como. Nestes dias juntos eu também acabei economizando uma boa grana. Ele tinha todos os esquemas de entrar nos parques naturais sem pagar, mesmo que isto implicasse em pedalar por dezenas de quilômetros a mais. Um dia, descolou carona pra nós em um caminhão de abacaxis. Os chineses ficaram com dó da gente ir lá atrás com os abacaxis e deixaram a gente ir com eles na frente. Surpreendente por 3 motivos: chinês não dá carona, chinês não quer saber de ajudar estrangeiro e eles não falavam uma única palavra de inglês. Ohad era um cara genial. 

La calva y la rastafari. Alemãs, jovens, perdidas por aí.

         Talvez em algum lugar do meu diário de bordo eu tenha anotado os nomes destas meninas alemãs com quem cruzei um par de vezes em cidades distintas. Como a própria descrição inicial diz, uma era careca e a outra rastafari. O nome cunhado em espanhol foi dado por Núria, uma amiga catalã que fiz depois de Ohad e que viria a viajar por muitas semanas comigo, de maneira intermitente, por vários países. Ela também se encontrou em distintos lugares com as duas, algumas vezes comigo junto, outras sozinha. Elas muito provavelmente eram um casal, mas em nenhuma das nossas animadas conversas isto foi mencionado. A primeira vez que as vi foi no bangalô-palafita que aluguei com Ohad. Eram nossas vizinhas de frente e estavam sempre sentadas no chão, na terra mesmo, debaixo de uma árvore que nos separava. Como muitos dos alemães da idade delas (pelo menos na minha experiência como viajante), elas se vestiam como mendigas. Não que meu guarda roupa fosse um exemplo de classe e bom gosto a esta altura, mas Ohad e elas se destacavam pelo despojamento anti-estético, por assim dizer. Nossa primeira conversa foi sobre uma aventura que elas estavam prestes a começar. Digamos que uma aventura baseada nos episódios de Jack Ass, onde o fim desastroso já está previsto. Elas iam comprar duas bicicletas que os locais usavam para transportar de tudo: botijão de gás, animais, lenha, capim, frutas, you-name-it e atravessar a fronteira até Laos. As bicicletas tinham design estúpido pra tal façanha. Eram pesadíssimas (só de olhar dava pra saber), feitas de ferro, rodas pequenas, e o compartimento para levar carga a deixava mais pesada ainda. Mas era pra carregar as mochilas delas ... ahhhh, bom, entendi agora. Meu espírito de aventureira masoquista me levou ao ímpeto de me convidar para ir junto. A coisa mais idiota que poderia me ocorrer. Mas eu queria algo que me tirasse da minha melancolia dos últimos dias. Nada melhor do que uma coisa ridícula destas, fadada ao fracasso. Ok, elas disseram. Mas você precisa comprar uma bike destas até amanhã à tarde, pois partiremos em 2 dias, bem cedo. Passei o dia seguinte percorrendo a cidade e querendo comprar a tal bicicleta suicida de algum morador. Não havia em lojas, não naquela cidade. Ninguém queria me vender, o que era óbvio pois estas pessoas as usavam pra trabalhar e o que uma estrangeira sem noção queria com uma bicicleta utilitária daquelas? Voltei desolada e contei à calva y à la rastafari meu insucesso. Elas me disseram que ainda havia uma chance. Se uma destas bikes delas tivesse conserto, elas levariam minhas bagagens e eu iria com uma bike comum. Elas pediram pra eu esperar até o fim da tarde, quando teriam resposta do cara que estava tentando o conserto. Nada feito. Fiquei frustrada, mas desejei-lhes boa viagem. Elas partiram assim. Uma bike normal e a outra utilitária levando a bagagem das duas. Uma semana depois, encontrei com as duas em uma cidade de Laos. Fui correndo pra saber como tinha sido a loucura. Durou meio dia. Acontece que a bike utilitária quebrou, o trajeto era montanhoso (eu bem que pensei nelas no caminho da travessia China-Laos,e me senti aliviada de não ter ido quando vi as montanhas), era impossível pedalar depressa e por muito tempo. Tiveram que acampar até o amanhecer e tomar um ônibus. Que pena, meninas... Fomos tomar uma cerveja na beira do rio. Ver o pôr-do-sol e celebrar a vida. Ainda encontraria com as duas em outras cidades, sem esperar, sem combinar, mas sempre um encontro inusitado e inspirador (elas e suas ideias que não paravam de brotar). 



Mais personagens da vida real, em breve. Nos próximos episódios.