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terça-feira, 19 de julho de 2016

Marrocos, pisando no continente africano.

        A primeira visão que tive do táxi, assim que desembarquei em Marrakech, ou Marraquexe, na versão em português, foi de um menino, adolescente, pedalando sua bicicleta em alta velocidade, vestindo seu djellaba branco e chinelos. O que me impressionou foi que, mesmo com o trânsito relativamente pesado, ele pedalava e digitava em seu celular, sem tirar os olhos da tela. Tive vontade de gritar pra ele  (na minha cabecinha doente e cansada de vôos chatos e esperas longas), com sotaque do Piauí, não sei por quê: Oxe, menino, olhe pra frente que tu vai é arrebentar esta tua cabeça  numa tamareira. Passado o surto, olhei ao redor. Mais de 10 da noite, um calor seco e ainda muitas pessoas na avenida larga, margeada por um jardim longilíneo  e muito bem cuidado que continuava por quilômetros sem fim. Famílias, grupos de garotas e de garotos, crianças, conversando, sentados na grama, ou caminhando. Parecia propaganda de shopping center, não fossem as vestimentas muçulmanas e o toque oriental da vegetação. Bom, poderia ser propaganda de um shopping center no mundo islâmico, né? Tudo muito limpo, aparentemente seguro. E eu esperando o mesmo choque de quando aterrizei em Nova Delhi, anos antes, numa noite gelada no meio de um blecaute. Mas agora era diferente: sem sujeira, sem animais na rua, sem vaca, sem bode, sem cabra, sem tuk-tuk, sem (muita) poluição, sem ônibus capengas e coloridos... Acorda, Andréa, você não está na Índia. Mas que estranho, pensei que fosse chegar lá, de alguma forma não cartesiana, já que meu vôo era pro Marrocos... Mas por que as pessoas estavam até tão tarde na rua? Por que algumas pessoas usavam a camisola e outras não? Depois minha irmã - de novo ela nas crônicas, lá vem ela, lá vem ela - me ensinou que era djellaba e não camisola. Foto ilustra melhor, né? 




        Eu pouco havia me informado sobre o Marrocos. Sou destas. Meio por preguiça, meio por comodismo (já que minha irmã tinha me dito que estava com vários guias que ela emprestou da biblioteca de Barcelona - vim a saber depois que era tudo mentira, que ela pegou mas não leu, a ordinária), meio que porque eu amo ser surpreendida e não gosto de ficar criando expectativas. Três meios... mas pouca informação. O que pode ser uma benção ou uma catástrofe. O máximo que fiz foi reservar um riad (algo entre hotel e pousada) e combinar um transfer pra me buscar no aeroporto. Muitos progressos. Idade avançada e uma certa precaução por traumas anteriores operam milagres em alguém que detesta muito planejamento. 
        Pois o motorista me deixou direitinho bem em frente ... a um labirinto de ruas e ruelas estreitas e escuras em frente a uma entrada, já dentro da medina. Lá fui entregue às mãos de um homem de meia idade que se identificou como ... nada, na verdade ele pegou uma de minhas malas, sorriu e disparou labirinto adentro, falando a cada 5 palavras em árabe, uma em francês... Eu arrastava minha mala de rodinhas pelas pedras imperfeitas e pensava, caracoles, onde este cara tá me levando?. Escuras e estreitas, as ruazinhas da cidade antiga ainda tinham moradores passeando, crianças brincando e uma turista com cara de e.t (moi). Pensei nos filmes do 007 ou do Ultimato Bourne.  Eles bem que poderiam ter cenas de perseguição filmadas ali. Chegamos à uma das portas cheias de personalidade, que são as únicas coisas que diferenciam o emaranhado de paredes e muros do labirinto. Fatima, a faz tudo do riad, me esperava de pijama. Um charme. Me ofereceu chá de menta e especiarias e não parava de falar de tudo que eu poderia comprar, comer, gastar ali. E eu querendo uma cama. Bem, eu a consegui, momentos depois. Aparentemente limpa e confortável, mas que escondia seres terríveis que viriam a se alimentar do meu sangue (e da minha irmã, a partir do dia seguinte) deixando marcas que ainda não saíram do meu corpo. Bed bugs. Bad bugs, too. Not good bugs at all. Percevejos. Aqueles mesmo, da música, que fizeram combinação com as pulgas e fizeram serenata debaixo do meu colchão. Quando criança eu ouvia esta música grudenta e achava engraçado. Até que centenas de picadas infeccionadas começaram a aparecer depois do 3º dia por todo meu corpo... Um pesadelo. Fui obrigada a tomar antialérgicos e anti-inflamatórios por uns dias e andar como zumbi por Marraquexe, mal conseguindo pensar e caminhar. Não, não foi nada bom. Rien de rien. Viajei pela Ásia por 9 meses, dormi em camas de palha, em travesseiros de arroz, no chão de casas de tribos, em muquifos inomináveis... e ali, naquele riad arrumadinho, cheio de decorações bacaninhas, um iogurte divino, os demoniozinhos me esperavam. O calor de fim de primavera, girando pelos 40 e poucos graus, não ajudou muito. Isto certamente contribuiu pra minha experiência na cidade não ser das melhores. Nem as pedras que as crianças me jogavam me irritava tanto (ahahahahaha). Sim, elas ME jogavam pedras com uma certa frequência. Digamos que eu tentava interagir com elas mais do que elas queriam. Elas não aceitam fotos, não gostam que você tente falar com elas, brincar, sorrir, de preferência, nem olhe para elas. Mas eu virava e mexia me esquecia e dava bronca quando elas brigavam entre si, queria fazer uma gracinha ali e uma interaçãozinha acolá. Eu me virava, caminhava um pouco, e logo vinham pedras na minha direção. Uma vez duas meninas me jogaram pedras do alto de uma janela. Noutra vez, um menino me jogou um limão cascudo, porque acho que ele estava sem pedras no momento. Depois de tantas tentativas frustradas e empedradas, eu procurei me policiar. Minha irmã vivia me chamando a atenção e me lembrando de não interagir. Era difícil. Mas eu também não queria acabar tomando uns pontos na cachola. 
        Um outro fator que nos fez questionar a visita à Marraquexe foi o fato de termos chegado bem no meio do Ramadan. Bem, pra quem, como eu, tem conhecimentos parcos sobre o islamismo, ou qualquer outra religião, divido o pouco que aprendi. O Ramadan é um período de 30 dias que ocorre todos os anos em países muçulmanos. É, segundo entendi, como seria a quaresma dos cristãos (quando ela era levada a sério mesmo). É um tempo de jejuar, orar, fazer caridade, tempo de tolerância, e de se sensibilizar ao sofrimento alheio. No caso, através da fome, pois o jejum é rígido: começa às 3 da manhã e vai até o por do sol seguinte.  Detalhe: nem água se pode beber. Nos primeiros dias eu achei muito estranho mesmo um fato reincidente quando eu ia conversar com os marroquinos: o bafo. Mau hálito, pros eruditos. Pensei que fosse coincidência, no princípio. Depois pensei que fosse azar meu que só encontrava com pessoas bafudas. Depois pensei que fosse um problema nacional daqueles inexplicáveis, tipo, realismo fantástico de Cem Anos de Solidão. Mas não. Era apenas o Ramadan. Junta-se o jejum de sólidos com o jejum de líquidos. Cetose mais saliva espessa. Quem sou eu pra questionar os motivos pelos quais as pessoas seguem a risca as regras estabelecidas pelas crenças... mas achei bem sofrido. Pra nós, turistas, e pra eles. É por isto que os guias e blogs de viagem sugerem que você visite o país fora deste período. Não apenas pelo STAY AWAY: BAPHO. Mas porque as pessoas estão muito mais reclusas, muitos restaurantes fecham pro jantar, hahaha, não se encontra nem uma mísera cervejinha pra beber naquele calorão, você acaba tendo que se adequar aos horários deles. E limitações, de certa forma. Por haver um número reduzidíssimo de turistas, nos tornamos iscas mais vulneráveis aos que vivem do turismo. Donos de lojas, taxistas, agenciadores de hotéis, etc. Em Marraquexe eles chegaram a ser chatos, insistentes e até mesmo um bocado agressivos na aproximação. No entanto, foi em Essaouira, cidade litorânea charmosíssima, que vimos uma cena que beirou o hilário. Nas ruelas da medina (depois volto a falar delas), um homem tentava empurrar acomodação pra dois mochileiros meio perdidos. Eles recusaram educadamente, apesar da insistência do cara. Este, não aceitou o não muito bem. Gritou com sotaque mais forte impossível: "Tourrrrrists... rrrrrrrrubbish!" E quando nos viu rindo, gritou pra gente algo como, "é isto mesmo, turistas são lixo mesmo". Coitadinho, era a fome. Por isto, quando chegava por volta das 5 da tarde, já começávamos a ficar mais espertas: era a hora das brigas. Hora de descontar no coleguinha a fome que chegava no ponto máximo. Era um bando de homem à toa, nas praças e nos cafés (sentados sem comer nem beber nada, apenas com cara de cão pedinte), que se engalfinhavam aos berros, e com uma turma de cada lado tentando apartar. Mas logo haveria a reza antes da esperada refeição e eles precisariam estar limpinhos e calminhos. O breakfast, como eles chamam em inglês a  1ª refeição do dia, ocorre, como disse, quando o sol se põe. As famílias se reúnem, convidam amigos, preparam pratos típicos de Ramadan (como nós, com a sexta-feira da Paixão e a Páscoa). Fui convidada a uma destas refeições por uma amiga que fizemos lá. Comemos harira (uma sopa marroquina bem típica, que lembra sopa de vó), folhados recheados de carne (estes eu recusei, por não comer carne), uma farofa doce de frutas secas, tâmaras e figos secos, sucos de frutas frescas feito na hora, chá tipico (de menta com especiarias), azeitonas, e inúmeros doces de castanhas, mel e folheados. Alguns, receitas especiais apenas feitas pro Ramadan. Depois da refeição, não paravam de servir chá quentinho e doces, mais doces destes de confeitarias, em pedaços já. Pronto. Agora haveria a última reza do dia, a 5ª. Sim, prometo, a última. Os homens, em seu melhor djellaba indo às mesquitas, e as mulheres, não sei. Porque elas não podem entrar nas mesquitas. E se estiverem menstruadas, nem rezar podem. Sei que a Fatima, do riad, ia rezar, mas não sei onde. Algumas vezes vi algumas rezando do lado de fora da mesquita, na calçada, perto da entrada. Elas tem o dia certo pra ir lá e as horas definidas. Não é assim, quero ir à mesquita e fui. Nãããão. Tem que entrar no esquema. Mulé, né? Já viu. Aquela sofrência. Nem pra rezar pode direito. Eu, por um acaso, estava menstruada em Marraquexe e minha irmã me disse: olha, não fala que você está menstruada não, porque isto aqui é sujo, não podem saber. Claro. Obrigada, mana, Eu, fluente que sou em árabe, ia mesmo pedir informação assim, Bom dia. Por favor, eu estou menstruada e queria muito ir ao museu Palais Badi. O senhor poderia me dar as direções? Ou, por favor, uma garrafa de água mineral grande. Mas olha que estou menstruada, hein? hahaha. Só me divirto com minha irmã. E, pois. Comilança terminada, última reza cumprida. Hora do? Rolê. Rolegioso, como eu apelidei. Aquela galera, mesmo, todo mundo saindo das mesquitas e indo caminhar na rua. Um mar de camisolas e gorros. E lenços nas cabeças das mulheres. Todos felizes, amigos, família, crianças ( e pedrasssss) brincando nas praças, nos parquinhos, nas avenidas... Nada como uma barriguinha cheia, prosa com Deus em dia, dever cumprido. E olha que, sem colocar uma gota de álcool na boca, eles conseguiam fazer mais algazarra que muitos de nós bebendo. Passamos a usar a palavra algazarra porque eu me lembrei que um professor meu de primário (ensino fundamental, é isto hoje?) disse que as palavras começadas com o prefixo al- vinham do árabe. Então minha irmã e eu pensamos, se são árabes estão fazendo? al-gazarra. E isto ia até próximo das 3 da matina, quando soava uma sirene e todos se recolhiam às suas casinhas para NÃO fazer amor, porque nesta época não se pode. 
        No final das contas todas, creio que ter ido ao Marrocos nesta época específica me permitiu vivenciar costumes e tradições que talvez me tivessem passado desapercebidos em outra ocasião. Mas a viagem continua, e as crônicas sobre o Marrocos também. Breve, num cinema próximo à você. 

p.s. Compartilho o vídeo da música Festa dos Insetos, de Gilliard. Um clássico.