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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Jaipur, Rajastão. (India, madam).

            Tudo o que ela queria era sair de Délhi. Escafeder-se. Sumir. Mas calma, mana. Acabei de chegar. Não, não, não. Vamos embora daqui. Não dá pra ficar em cidade grande assim. E gelada. Este frio está me matando. Ok. Rodoviária, vamos nós. Vamos pra onde? Rajastão. Deserto, quentinho... Jaipur seria a primeira cidade do Rajastão. E pra lá nos dirigimos, logo depois do nosso café da manhã frito e apimentado do trailer, no sacolejo de mais um  ônibus seboso e cambaleante. Pelas estradas tracejadas de asfalto e preenchidas de terra. Mochilas amontoadas no teto do ônibus, ao vento, ao relento. Sentamo-nos nos dois primeiros assentos e tínhamos a visão total da estrada. Eu mal conseguia prestar atenção nas histórias dela. Aventuras de dois meses perambulando pelo país, tanta excitação e vontade de compartilhar as novas experiências, mas eu não tirava os olhos da estrada à nossa frente. Aquele caos bem orquestrado me hipnotizava. Animais, motos, pedestres, carros, ônibus, carroças, caminhões. O zigue-zague constante e aflitivo de tantos elementos em movimento. E a buzina intermitente e ensurdecedora do nosso ônibus, que fazia eco com as dezenas ou centenas de outras buzinas dos outros veículos. Estou ficando surda, disse eu. E zonza. Muito barulho. Ahhhh, acostume-se. É sempre assim. Mulheres construindo partes das estradas, cavando e carregando pedras e feixes gigantescos de lenha na cabeça. Cadê os homens? Por que não estão trabalhando também? Trabalho pesado é coisa de mulher por aqui... Uma dentre muitas outras facetas da sociedade indiana que causam revolta. 
         Seis horas depois chegamos à capital do estado semi-desértico do Rajastão. Jaipur, também conhecida como a cidade rosa, por ser pintada em sua maioria em uma coloração, digamos, rosa... Depois de uma escolha minuciosa pelo guia, dentre as três ou quatro hospedagens mais baratas da cidade - nosso modus operandi mochileiro-sem-vergonha - escolhemos um lugar que parecia divertido: um hotel famoso no passado, cheio de glórias passadas e já um bocado passado. Mark Twain havia sido um de seus ilustres hóspedes. Uma senhora de 300 anos atendeu a porta. Nenhum dente à mostra. Enrugada, franzina (aliás, esse adjetivo tem sido e continuará sendo comum na descrição de muitos dos indianos), doce. Nos levou ao nosso quarto, depois de combinarmos o preço. Passamos pelo átrio da casa, e seguimos ao nosso quarto. Portas que davam pra varanda do átrio, entramos e nos sentimos em um ... museu. Todos os móveis pareciam tão antigos quanto o hotel. Afrescos nas paredes, o que é um pleonasmo vagabundo - porque não há afrescos em qualquer outro lugar que não nas paredes - banheira branca com pezinhos charmosos, louça antiga, cama com cabeceira antiga... tudo tão suntuoso! E podre! Tudo tinha uma camada de poeira de uns 2 centímetros. E nada funcionava, obviamente. O encanamento já havia apodrecido décadas antes. Nada além de ar passava por eles. Acho que nem o Hotel California imortalizado na música dos Eagles era tão inútil enquanto hospedagem. Empoeiradas que também estávamos, e geladas pelo inverno que castiga o deserto ao anoitecer, voltamos à senhorinha de 300 anos para apresentar-lhe nosso problema. Não há água encanada, estamos geladas, sujas e aí? Que sugere a senhora, hein, Matusalém? Bucket. Hot water. Extra money. Ok, ok. Já é algo. Um balde de água fervente, outro de água fria, muitos berros de frio ecoando pelos aposentos, fantasmas reclamando do barulho, uma farra. Era desesperador tomar banho de caneca naquele gelo de banheiro. Mas era hilário ver minha irmã se contorcendo de frio enquanto eu esperava minha vez. Éramos as únicas hóspedes, então, podíamos gritar a vontade. A senhorinha e sua neta dormiam quase ao relento, na beirada do átrio, seguindo o costume indiano de dormir em camas trançadas de tecido, sem colchão. Toda encolhidinha e coberta, parecia uma criança de tão pequenina. 
          Dia seguinte saímos em busca de aventura, que se iguala a encrenca, mesmo quando não temos a intenção. Vamos visitar todos os templos, fortes, castelos de marajás, tudo, tudo, tudo. Que ânsia de conhecimento! Que sede de explorar! Oh! Para isto, vamos contratar logo um motorista de rickshaw para ganharmos tempo e não nos perdermos por aí. Ok. Mostramos a ele nosso roteiro, pesquisado na noite anterior, nos guias que tínhamos disponíveis. Ele balançava a cabeça, querendo mostrar que discordava das nossas escolhas. Bom, meu amor, vai nos levar ou não? Sim, sim, levo. Mas não. Na prática ele dizia uma coisa e bem, fazia o que a comissão que ele recebia melhor lhe convinha. Antes do turismo, vamos passar na lojinha do Raj. Nãoooo, queremos turismo. Rapidinho, só tomar um chá. E lá estamos nós, Raj mostrando o que tinha, nós tomando chai, queremos ir embora. Ok, madam. Pra onde? Pro templo do pirlimpimpim. Ok. Mas antes passemos no restaurante de uma amigo, o Arjun , que quer conhecê-las. Mas filho, ele nem sabe que a gente existe... Sabe sim! Só um chai, não demoramos. E lá estamos nós, raptadas e mal humoradas. Pela última vez, amigo motorista, queremos ir a um templo, a um forte, a um castelo de marajá! Queremos ser turistas! Ok, Ok, agora é sério. Vou levá-las.... só.... que.... não!!! Hahahaha. Tolinhas, vamos passar na fábrica de tecidos do meu queridíssimo amigo Gopal. As mantas mais lindas, de pura lã. Os sáris mais cobiçados. Mas vocês podem tomar.... chai, se quiserem. Chegamos a entrar na fábrica de tecidos, mas assim que começaram a desmontar as prateleiras pra vermos as peças enormes e caríssimas, nos entreolhamos e dissemos, plano de fuga! Raj começou a correr atrás da gente e tentar nos convencer de voltar. Mas não, Raj. Chega. Agora é tarde demais. Acabou o amor. Você mentiu demais. Adeus, Raj! Adeus! Não nos procure, jamais. Desnecessário dizer que ele ficou contrariadíssimo e bravo conosco. 
           Fomos em busca de outro rickshaw. Outro amor bandido. Mas o lugar era meio ermo. Não tinha nada por ali. A salvação imediata foi o ônibus mais kitsch que passava naquela hora de desamparo locomotivo. Paramos o ônibus colorido, adornado por um altar de luzes pisca-pisca, flores de plástico, molduras cintilantes e pinturas de Krishna, Ganesha e afins. Um passeio antropológico e sem destino certo. Downtown? Cabecinhas balançando. Sim? Não? Talvez? Ah, vamos lá. Estamos perdidas, sigamos o gps do acaso. Paramos em um mercado animadíssimo com música ao vivo, estrelando três senhores de turbante vermelho, tocando instrumentos que desconheço ou não me recordo bem. Eles nos olhavam e se divertiam com nossa insinuação de dança. Fomos tomando coragem e atravessamos o mercado a céu aberto ensaiando passos debochados e nos divertindo mais e mais a cada expressão de espanto ou encorajamento. Nosso itinerário foi quase todo escoado pelos desencontros e segundas intenções do nosso querido Raj, mas ainda havia luz e energia, portanto vamos a algum lugar pra chamar de templo. Ou forte. Ou castelo de marajá. Mais um rickshaw e sua precisão suíça e lá estamos nós. Aonde? Não sei. Onde estamos, sr. motorista. Balança a cabeça, aponta para uma construção maravilhosa do outro lado da pequena estrada e mostra. Como se fosse óbvio. Estamos em frente a este lugar. Eu paro aqui, junto a outros motoristas. Bebo meu chai. Jogo conversa fora. Vocês vão até do outro lado, pagam o ticket, visitam e voltam. Já tínhamos desconfiado a esta altura que havia mais de um nome pra cada lugar que queríamos ver. Mas queríamos saber o-no-me-do-lo-cal-em-que-es-tá-va-mos... Qual o mal nisto, gente? Que agonia! Ok. Este cara não vai nos dizer. Ele quer se ver livre da gente pra encher a cara de chai. Vamos parar outra pessoa e perguntar. Assim a gente pode ticar da nossa lista, pronto, aqui já viemos. Sr. Por favor. Onde é este lugar? E apontamos pro lugar lindíssimo pra onde nos dirigíamos. Ele olhou. Olhou pra nós de volta. Nada. Hein? Onde é aqui? Nada. Pelo amor de deus, onde estaaaaaaaamoooooooossss? Here, madam? INDIA!!!!!





quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014


Para ilustrar como os professores de inglês são bem vindos na China.
                         


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Índia, te visito. Reloaded.

             Camila tinha estado em Goa. Estado indiano onde os portugueses haviam deixado seu legado expansionista, mas onde a língua portuguesa raramente é falada, a não ser por poucas pessoas de idade avançada. E em alguns escritos em portões de ferro, como: Família Almeida. Há um pequeno movimento jovem, nos dias atuais, que pretende manter viva a herança da língua, mas este é tímido e isolado. Mas ela não estava em Goa para praticar Português. The party girl queria curtir. Seus novos amigos viajantes, as festas sem fim, as praias. Por isto partir para encontrar a irmã causava-lhe sentimentos ambivalentes. A irmã, esta famigerada, inconveniente (eu, no caso) que não queria ir pra praia, não a via fazia um bom tempo, já que Camila morava em Brighton, na Inglaterra. Portanto, ver a irmã = feliz, deixar os amigos e a vida louca = triste. Pronto, explicada a ambivalência da personagem Camila. Ela saiu diretamente de uma rave de reveillon. Linda, louca e abalada. Teria pela frente uma viagem de ônibus de 15 horas até Bombaim, pra depois tomar um avião até Délhi e então, me encontrar. Ao chegar na rodoviária, ainda zonza da bebida e da falta de sono, descobre que seu lugar no ônibus havia sido vendido. Overbooking no sistema rodoviário indiano. O que se pode esperar de um país com tanta tanta tanta gente? Overbooking em tudo, né? Na fila da padaria, no banheiro, no parque de diversões. Tudo na Índia é over mesmo. Choro convulsivo. Eu preciso ir neste ônibus, preciso, preciso! Creio que tenho refazer a frase. Choro convulsivo e alguma histeria, imagino eu. Tenho um voo a tomar em Bombaim, minha irmã me espera em Délhi, as criancinhas famintas na África, o degelo das calotas polares, a extinção dos mamutes... ou seja, me coloquem neste ônibus, agooooooooooora.... Ela conseguiu. O motorista, tocado pelo seu desespero, ofereceu a caminha do segundo motorista, um pequeno nicho que fica ao lado do primeiro, próximo do câmbio. Minúsculo espaço impensável em qualquer país que preze a segurança dos passageiros. O segundo motorista consentiu. Não sei exatamente como se deram estes diálogos, porque até onde sei, nenhum dos dois motoristas falava inglês. O segundo motorista foi um mártir. Ele trocou sua caminha-nicho-sobre-o-painel por uma prateleira estreitíssima acima da cabeça do motorista, onde eles guardavam a própria bagagem. Sim, ele deu um jeito de caber. Acho que ele fazia bico de contorcionista. Mas Camila parecia uma ingrata. Só fazia chorar. Estava desgastada, triste, e sei lá mais que desculpa ela tem pra tanto chororô. Batman e Robin se desdobravam em agradá-la, pensando que ela se sentia mal por estar ali, exposta e fragilizada pelo assento improvisado. Creio que se o ônibus batesse, ela viraria um inseto esmagado contra o para-brisa. A dupla dinâmica comprava-lhe chá, flores frescas para colocar-lhe ao redor do pescoço, comidinhas, incenso... Serviço de primeira. Até que ela finalmente parou de chorar, horas depois. E chegou em Bombaim e tomou seu voo à Délhi e chegou em Délhi às três da tarde, e a minha metade da história foi contada na primeira crônica. Ou seja, eu havia chegado às três da manhã e já estava dormindo por exaustão em um hotel próximo ao aeroporto. Aqui um pout-pourri do que ela viveu: chega ao aeroporto, procura pela irmã, nada da irmã, espera, procura novamente, nada ainda, começa a se preocupar, busca informações, nada de informações, chora, chama atenção das pessoas, de onde você é?, Brasil, Ronaldo!, Ronaldo a puta que pariu, cadê minha irmã?, de um aeroporto a outro, ônibus capenga, nada de irmã, administração do aeroporto, a mesma mulher que ouviu meu choro, opa!, outra chorona esteve aqui na manhãzinha, buscando a irmã, cadê ela?, sei lá, caiu a ficha, 3 am / 3pm, ferrou, vou nessa, porque to com pressa. A maratona continua. Ela vai à um hospital próximo, não há estrangeiros aqui, darling. Vai à rodoviária. Chora, chama a atenção, sempre formando uma roda de curiosos, olha! uma estrangeira linda e branca chorando! Vamos até ela perguntar de onde ela é e falar o nome do primeiro jogador de futebol que a gente lembrar daquele país. Pede ajuda à polícia. Mas que empenho. Descansa um pouco, mana. Depois me procura, relaxa, estou dormindo em um hotel confortável, cheiro de curry, staff pensando que sou rica e balançando a cabecinha pras gorjetas. Mas ela é uma capricorniana obstinada. Não desiste. Um policial mal intencionado oferece ajuda. Diz que ela pagaria o táxi e ele iria a todos os lugares que ele pudesse pra coletar informações. Bom, se for assim, tudo bem, estou mesmo desesperada. Ele aproveita o táxi gratuito e começa a fazer visitas, em bairros distantes, visita amigos, parentes, credores, amantes... Algo como duas horas depois, ela o questiona. Ele responde que está tudo sobre controle. E que precisa coletar mais informações. Pobre irmã. Seu cérebro estava pasteurizado pela falta de sono, cansaço, estresse, medo, preocupação. Ela tenta conversar com o motorista que, contrariado, arrota duas ou três palavras em inglês: Bad man, your money. (Na verdade, quatro palavras em inglês). Vamos embora, ela decide. O policial volta, começa uma discussão intensa com o pobre taxista. Ainda impõe uma última carona. Livre dele, ela saca seu Lonely Planet e escolhe um hotel. Me leva aqui, por favor. Abatida, chega ao hotel-muquifo e liga pro Brasil, pra Inglaterra, pro CVV, pro programa da Márcia Goldschmidt. Horas depois, quando eu retorno das catacumbas e consigo o contato dela, o aguardado e já relatado telefonema acontece: mana? mana! mana? mana!, ri, chora, ri, chora. Ponto. Tarde da noite, decidimos nos encontrar somente na manhã seguinte, cedinho, no meu luxuoso hotel de vinte dólares (toda família tem uma pessoa rica... exceto a minha). Eu a aguardava ansiosa na frente do hotel. Vou de rickshaw,disse ela, aquela moto com cobertura e banquinho pra duas ou três pessoas na parte de trás. O trânsito intenso me deixava atordoada. Queria vê-la logo. Avisto um rickshaw se aproximando e diminuindo a velocidade. O dia estava ensolarado, porém gelado. Seria ela? Vejo um pé. Alías, dois. Reconheço-os. Os pés mais feios do mundo! (provavelmente serei processada após a publicação desta crônica, mas é pura licença poética). Conheço estes pés!!! Agora queimados de sol, e com as unhas mais pretas de sujeira indiana. Era ela! Desce soberana enrolada em mil cangas. O frio a pegara de surpresa. Somente a improvisação a salvaria. Cangas e mais cangas enroladas pelo corpo, cabeça, mas os pés de fora, denunciavam sua longa estadia na praia. Olhei bem para ela. Tudo o que eu conseguia ver eram seus olhos azuis iluminados e cinquenta tons de marrom na sua pele! O que era aquilo, meu deus? Sujeira, sol, poeira, experiência, vida! Depois do susto, um café da manhã improvisado num trailer ali ao lado, comemos uma samosa apimentada e eu tive que engolir umas duas cocas-cola pra aliviar meu paladar afogueado. Minha irmã não me poupou na minha primeira experiência gastronômica. Às oito da manhã, na poluição e improviso da rua. Acho que foi uma espécie de vingançazinha. Um prato que se come... apimentado. Seguimos dali pra Jaipur. Mas isto já e outra crônica. 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Drops Chineses.

            Muito dos detalhes das viagens se perde, infelizmente. Com o passar do tempo, que deixa a memória toda puída e esburacada, ou pelas anotações que são esquecidas, rasgadas, molhadas ou mesmo abortadas pela preguiça momentânea e pela procrastinação. E o que fica, quando muito, são pequenas notas perdidas em rodapés de guias, tickets de metrô, entradas de museus, guardanapos de cafés, folhas soltas sobreviventes da sorte... Ainda há as anotações eletrônicas, nas linhas e entrelinhas de emails mandados às pressas ou com dificuldades de conexão. Estes me salvam ainda, da minha ausência de pragmatismo e da total displicência com a qual registrava minhas viagens por aí. Na China, por exemplo, até que havia bastante oferta de locais que acessavam a internet, mas passada a burocracia inicial de ter que se fazer um registro com o número do seu passaporte, conseguir de fato navegar com alguma velocidade.... era quase uma ironia do destino. Fora o sem número de sites bloqueados pela censura do governo, o que travava a maior parte das buscas e pesquisas. Em uma destas sagas cibernéticas, perdi um email gigante com muitas histórias e mentiras. As mentiras eu me lembro até hoje, mas infelizmente as histórias se perderam. Alguns drops destas histórias estão aqui. Encontrei-os em um caderninho empoeirado que relata exatamente a perda do email... e os aos náufragos drops dou uma segunda chance de vida. 

Lia-se assim:
" No email eu listava uma série de fatos curiosos e bizarros que eu tenho vivido. Vou tentar recapitular:

  • Quatro grilos em uma gaiola - minúscula. O que é mais estranho, os grilos na gaiola, ou o fato dela ser minúscula? 
  • Cachorros em coleiras, porcos em coleiras, gatos em coleira, macacos em coleira. Conclusão: o mercado de coleiras chinês está aquecido.
  • Travesseiros recheados de arroz,ao invés de espuma, na maior parte de hotéis, pensões e pousadas em que ficamos. Dói!
  • Em um hotel, começamos, eu e uma amiga, a enumerar todas as coisas que funcionavam no quarto. Relatório final: somente a cama. Durmamos.
  • As placas com sinais estapafúrdios nos parques, ruas e bibocas chinesas, brilhantemente traduzidos para o inglês, as follows:
  • PLEASE, DON'T STAY! (e o desenho de uma figura humana com uma faixa cortando-a). Ótimo para sogras e chefes;
  • NICE TO LIVE. PAY ATTENTION TO SAFETY. (como são doces, estes chineses?);
  • ONLY URINATE. (no banheiro de um café. Tá, mas como eles controlam isto???);
  • FALL INTO THE WATER, CAREFULLY. (but not suddenly, huh? - em um parque com um enorme lago);
  • STEP THE FLOWERS, AND GRASS NOT! 
Foi bom relembrar. Me dá vontade de ir à China novamente. Todos os perrengues que se vive naquele país idiossincrático valem a diversão! 

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Da luz e dos estados (de espírito - excluído o de porco).

         Visitar um lugar é fácil, basta estar lá. De corpo presente, câmeras empunhadas, aplicativos de celulares baixados e abertos. Talvez ainda um mapa e um guia nas mãos, para os mais old school. Mas creio que para conhecer um lugar, é preciso vê-lo sob várias luzes. E estados de espírito. A mesma estrada ao nascer do sol quase em nada se assemelha a ela mesma, ao meio-dia. As sombras suaves da manhã reforçam a chegada sedutora do astro egocêntrico, enquanto o meio-dia expõe com crueza as imperfeições de cada centímetro do asfalto, das plantas, do entorno. A mesma paisagem muda ao longo do dia. A luz do sol e suas intensidades graduais revelam ângulos, escondem texturas, enfatizam contornos, evidenciam contrastes. Nunca me esqueço minha surpresa ao ver as fotos de uma francesa, de um mesmo parque que visitamos em Pequim. Ela estivera lá em um dia de chuva abundante. Suas fotos dos templos e das construções do parque - semelhantes ao nossos coretos de praças mas com os telhados típicos orientais - deixavam entrever a vegetação exuberante e a vivacidade das cores pelas cortinas que a chuva formava na beira dos telhados ao cair. Não parecia o mesmo parque. O meu registro certamente foi muito mais pobre e objetivo, embora, em tese, um dia de sol supere um dia de chuva. Assim como a luz, os humores plasmam nossas emoções e direcionam nossa percepção do exterior. Uma paisagem estonteante, ao fim de um longo dia de caminhada, doloridos, famintos, exauridos...não causa o mesmo impacto do que no auge da nossa disposição. Existem tantas torres Eiffel e muralhas da China quanto estados de espírito. Uma praia Tailandesa não pode ser tão bela pra quem levou um fora, não? Ou sua beleza tem tons mais acinzentados. Assim foi comigo em Pyingao, pequena cidade Chinesa da dinastia Han, extremamente bem preservada por mais de cinco séculos e onde o sistema bancário começou a tomar forma. Minha tpm estava torturante. Eu estava na China há uns dez dias. Tinha largado meu emprego, minha casa, família e amigos pra mochilar pela Ásia. Eu olhava as primeiras formas de dinheiro e pensava, um lixo. Passeava pelas ruas pitorescas de Pyingao e falava, um nojo. Pensava no quão idiota eu era por ter largado tudo pra estar sozinha a milhões de kilometros de distância. Nada me agradava. Meu azedume era universal. Uma mulher de tpm não vale a passagem que compra. Não vale o dólar que troca. Deveria ser proíbida de sair de casa, e se sair, deve ficar presa na sala de interrogação do aeroporto. Até melhorar! A cidade seguinte voltou a ter sabor de aventura, cheiro de liberdade. A tpm ficou na estação anterior...


Em algum parque de Pequim.



Estado de espírito: beirando o de porco.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Índia, te visito.

      Seriam minhas primeiras férias remuneradas. Carteira assinada, férias registradas, tudo muito adulto, lindo. Eu pensando em me enfiar em qualquer praia cheia de mosquitos e minha irmã, meses antes, prevendo meu rito de passagem para a vida adulta, começou a sovar a minha mente pra irmos juntas à Índia. Quase ninguém ia pra Índia nesta época. Não daqui, do Brasil. Não era moda, tendência, coisa nenhuma. Era sempre cara de nojo, de susto, de dó. Mas lá da Inglaterra, onde ela morava, era trendy. Todos iam e voltavam, e iam novamente, comedores de curry insaciáveis e apreciadores de viagens baratas. Quase gratuitas pra eles. Acho até que voltavam com mais dinheiro do que iam. As libras, de tão fortes, se reproduziam no caminho. Enfim, ela tanto fez que convenceu-me a ir. Eu pagaria minha passagem até a Inglaterra e ela me emprestaria o dinheiro pra passagem de Londres à Nova Delhi. Prevendo um possível calote, ela a comprou de uma companhia bem chinfrim, que faria a viagem tornar-se uma lamúria eterna: Kwait Airlines. O que ainda não foi revelado é que ela havia partido rumo à Índia dois meses antes, e o trajeto foi feito por mim, de Londres à Delhi, na solidão da ignorância dos detalhes que tanto me incomodaram. Voo longo, escala demorada em Bahrein, dezenas de pessoas com tosses intermináveis, crianças chorando, tripulação impaciente com a simplicidade dos passageiros e um cheiro de curry pelo qual eu me apaixonaria tempos depois. Na escala em Bahrein eu era a única mulher vestindo calça jeans. A única mulher viajando desacompanhada. A única bizarrice com uma mochila nas costas. A que valia menos camelos! Crise de autoestima! Mas eu chegaria sã e salva à Delhi, onde minha bela irmã caçula estaria me esperando, sorridente, às 3 da manhã, vinda de não sei onde, somente para me recepcionar! Que regozijo! Que alegria! Mas não poderia estar mais enganada. E apenas um dia inteiro depois de muita aflição, o destino reuniria estas duas incautas irmãs. 
O pouso em Delhi foi qualquer coisa de surreal. Um apagão de dimensões continentais afligia o norte todo da Índia, Nepal, Bangladesh e arredores. Vista de cima, a cidade parecia um vilarejo parcamente iluminado. Luzes fraquinhas e espalhadas na imensidão do breu. Impossível pousar. O piloto começa a dar voltas. Gostaria mesmo de dizer, se pudesse: voltas redondas em círculos bem arredondadinhos... pra se ter noção da sensação que sem tem em voar em ciclos no breu quase total, depois de muitas horas confinados. O denso fog tornava o pouso ainda mais incerto e perigoso. Mais voltas. Pela primeira e única vez na minha vida sobre asas, vomitei. Não foi nada a la O Exorcista. Mas vômito é sempre desagradável e meio deprimente. Quarenta minutos orbitando Délhi e pousamos em segurança. A ansiedade me corroía. O aeroporto estava (mal) iluminado com geradores próprios e esperar na fila da imigração lembrava uma fila em um centro espírita, na penumbra, pra tomar um passe. Flores de plástico e pôsteres de papel enfeitavam as mesas e as paredes da sala dos guichês de imigração. Dezenas de imigrantes de países vizinhos eram tratados com desdém e até mesmo rispidez pelos agentes. Pobres, franzinos, frágeis. Possivelmente em busca de uma chance de trabalho. E eu só queria um abraço, um táxi e uma cama quente. O abraço, diga-se de passagem, seria da minha irmã... e não de um agente de imigração. O frio era intenso. O inverno estava em seu ápice. O corredor para a saída do aeroporto nunca foi tão longo, ermo e escuro... (anos depois eu voltaria à este mesmo aeroporto, já totalmente reformado e menos kitsch). O choque me esperava. Não o choque térmico. O choque de realidade. Um mar de rostos esquálidos, cobertos por panos, cobertores, mantas, observavam a chegada dos passageiros do vôo em que cheguei. Dezenas deles ofereciam táxi, moto, mototáxi, bicicleta, pogobol, patins, beijo, abraço, hotel, pensão, picolé, guia, rickshaw, disco voador, de um tudo. E te puxavam pelo braço. E desequilibravam seu caminhar tonto, tentando segurar a mochila, a mochilinha, o casaco, o que fosse possível. Eu só focava em achar um rosto familiar. Pedindo licença pra outras dezenas de pessoas que, estendidas no chão, buscavam abrigo do frio lá fora e pagavam uma taxa pra dormir no quentinho do saguão do aeroporto. Nada da minha irmã. O quadro de vôos continha dois tipos de mensagens pra todos os vôos: cancelled e diverted. Ou seja, cancelado e desviado. Fer-ro-u. Cadê ela? Já era muito mais que a hora combinada. Sim, eu estava atrasada. Mas... mas... mas... não era culpa minha. Não. Ela não estava lá. Ninguém pra me dar informação. Os seguranças só queriam perguntar de onde eu era e exclamar: Ronaldo!!! Ronaldo a puta-que-te-pariu! Camila! Camila! Minha irmãããã!!! Era primeiro de janeiro. O dia não clareava. O frio era de doer os ossinhos. Exaustão já me nocauteava. O cenário era estranhíssimo e assustador. Ninguém parecia se importar com meu choro e meu pedido de ajuda. Nenhum telefone funcionava devido ao apagão... onde estava Camila? Poderia tentar ligar pra Inglaterra, onde um amigo dela poderia me dar alguma informação... mas sem chance. Alguém acabou por me informar o óbvio. Eu estava em um aeroporto internacional. Ela chegaria de um destino doméstico. Então... talvez eu devesse ir pro aeroporto de vôos domésticos. Sim, ela poderia não ter se atentado pra isto. Talvez eu fosse mais esperta que ela. Hum? Não contavas com a minha astúcia, Camilinha? E pra lá me dirijo, depois de muita pergunta e correria pra tomar um ônibus seboso e capenga que fazia o trajeto entre os dois aeroportos. O fog era tão denso que parecia que segurava o ônibus pra trás. Eu estava drogada? Sonhando? Alucinando? O que era aquela cidade? Eu conseguia ver apenas trechos por detrás da neblina. Trânsito caótico. Gente atravessando na frente de tudo. Animais. Bicicletas, motos, risckshaws, pogobols, patins, palhaços, malabaristas, engole fogo, discos voadores... Eu não estava bem. Precisava dormir. Comer talvez. Chegando ao aeroporto, mais dúvidas. Perguntas sem respostas. Brasil-Ronaldo-puta-que-o-pariu. E choro. Minha ficha caiu que eu nem ao menos sabia de onde ela estava vindo! Parecia tão certo que ela ia me esperar. Fui parar na administração do aeroporto. Tentaram me ajudar, mas eu não tinha informação de nada. Nem eles, na verdade. Dezenas de voos foram cancelados... enfim. Nunca encontraria minha irmã. Jamais. Somente em outra encarnação. Decidi entrar em um táxi e ir pra um hotel. Que hotel, madam? Ahhh, qualquer um, meu filho. Eu não tenho guia, não tenho celular com internet (na verdade, ninguém ainda tem), não tenho informação, não tenho nem irmã... chuif chuif chuif. Me leva pro hotel do Ronaldo que tá bom, queridinho. E o rapaz me deixa em frente a um hotel com cheiro forte de curry e o barulho ensurdecedor de um gerador de energia bem
 na porta. Vinte dólares. O queeeeeeeeeeeee? Tá pensando que eu sou rica? Minha irmã não paga mais do que três ou quatro dólares pra dormir, segundo ela. Bom, já que ela não está e nunca estará... aceito. Subimos, subimos, subimos. Cheiro de cuuuuurrry nas escadas de mármore encardido. Abre-se a porta. Janela de frente pra rua. Ótimo, pois o barulho do gerador iria tirar a prova de que meu sono era absoluto. O rapaz balança a cabecinha, como os indianos fazem, como um não que samba e rebola. Espera a gorjeta. Sorri. Recebe a gorjeta. Balança a cabecinha. Vai embora. Eu deito de roupa e tudo. Cataploft! Janela escancarada pro frio porque já não sinto mais nada... Antes de pensar em tentar ligar novamente pra Inglaterra, dormi e morri. Acordei à noite. Desesperada. Onde estou? Quem sou? Quanto devo? Meu deus, preciso ligar pra Inglaterra urgentemente!!! Não sei quantos dias dormi. Se estou viva ou morta. Ou se o céu cheira a curry mesmo. Nunca pensei em ligar pro Brasil e perguntar aos meus pais porque não queria matá-los do coração. Mas não adianta pensar, quando sua irmã não pensa também... Eles já sabiam do "'meu sumiço"e estavam aflitíssimos. Meu pai já estava prestes a contactar a embaixada pra notificar meu sumiço. Da Inglaterra, nosso amigo Volkan pensou em me xingar, mas percebeu que era mais prático me avisar que minha irmã estava no número tal e era pra eu ligar urgentemente pois a polícia de Délhi estava avisada sobre meu desaparecimento. Mas eu estava lá o tempo todo! Minha irmã estava lívida quando atendeu o telefone! Choramos. Rimos. Choramos. Só. Tá bom assim. Mas rimos muito no final. Ela estava mesmo hospedada num muquifo de três dólares, sem café da manhã, mas com direito a ouvir em altíssimo som o programa Who Wants to be a Millionaire, que deu origem ao filme. E olha que ela não tinha tv no quarto. Mas sua vista privilegiada era um forro de madeira, cai-não-cai, com um ninho de ratinhos barulhentos como inquilinos. Nosso erro foi amador: eu chegaria às três da manhã e ela às três da tarde...
O tapescript da ligação está na caixa preta da cabeça da minha irmã, que narra, palavra por palavra, nossa conversa inspirada em 007: 
Ela, da Índia, em um telefone público devorador de moedas - Mana, fala rápido, quando é que você chega? A ligação tá péssima e tá ficando cara.
E eu, concisamente disse: - Dia tal, às três horas. 
Ela então, pergunta e confirma: - Dia tal, às três, em Délhi?
- Isso. Como é que você vai chegar lá? Avião, ônibus?
- Eu me viro. A gente se vê lá no aeroporto. Ciao!
- Ciao!