Tudo o que ela queria era sair de Délhi. Escafeder-se. Sumir. Mas calma, mana. Acabei de chegar. Não, não, não. Vamos embora daqui. Não dá pra ficar em cidade grande assim. E gelada. Este frio está me matando. Ok. Rodoviária, vamos nós. Vamos pra onde? Rajastão. Deserto, quentinho... Jaipur seria a primeira cidade do Rajastão. E pra lá nos dirigimos, logo depois do nosso café da manhã frito e apimentado do trailer, no sacolejo de mais um ônibus seboso e cambaleante. Pelas estradas tracejadas de asfalto e preenchidas de terra. Mochilas amontoadas no teto do ônibus, ao vento, ao relento. Sentamo-nos nos dois primeiros assentos e tínhamos a visão total da estrada. Eu mal conseguia prestar atenção nas histórias dela. Aventuras de dois meses perambulando pelo país, tanta excitação e vontade de compartilhar as novas experiências, mas eu não tirava os olhos da estrada à nossa frente. Aquele caos bem orquestrado me hipnotizava. Animais, motos, pedestres, carros, ônibus, carroças, caminhões. O zigue-zague constante e aflitivo de tantos elementos em movimento. E a buzina intermitente e ensurdecedora do nosso ônibus, que fazia eco com as dezenas ou centenas de outras buzinas dos outros veículos. Estou ficando surda, disse eu. E zonza. Muito barulho. Ahhhh, acostume-se. É sempre assim. Mulheres construindo partes das estradas, cavando e carregando pedras e feixes gigantescos de lenha na cabeça. Cadê os homens? Por que não estão trabalhando também? Trabalho pesado é coisa de mulher por aqui... Uma dentre muitas outras facetas da sociedade indiana que causam revolta.
Seis horas depois chegamos à capital do estado semi-desértico do Rajastão. Jaipur, também conhecida como a cidade rosa, por ser pintada em sua maioria em uma coloração, digamos, rosa... Depois de uma escolha minuciosa pelo guia, dentre as três ou quatro hospedagens mais baratas da cidade - nosso modus operandi mochileiro-sem-vergonha - escolhemos um lugar que parecia divertido: um hotel famoso no passado, cheio de glórias passadas e já um bocado passado. Mark Twain havia sido um de seus ilustres hóspedes. Uma senhora de 300 anos atendeu a porta. Nenhum dente à mostra. Enrugada, franzina (aliás, esse adjetivo tem sido e continuará sendo comum na descrição de muitos dos indianos), doce. Nos levou ao nosso quarto, depois de combinarmos o preço. Passamos pelo átrio da casa, e seguimos ao nosso quarto. Portas que davam pra varanda do átrio, entramos e nos sentimos em um ... museu. Todos os móveis pareciam tão antigos quanto o hotel. Afrescos nas paredes, o que é um pleonasmo vagabundo - porque não há afrescos em qualquer outro lugar que não nas paredes - banheira branca com pezinhos charmosos, louça antiga, cama com cabeceira antiga... tudo tão suntuoso! E podre! Tudo tinha uma camada de poeira de uns 2 centímetros. E nada funcionava, obviamente. O encanamento já havia apodrecido décadas antes. Nada além de ar passava por eles. Acho que nem o Hotel California imortalizado na música dos Eagles era tão inútil enquanto hospedagem. Empoeiradas que também estávamos, e geladas pelo inverno que castiga o deserto ao anoitecer, voltamos à senhorinha de 300 anos para apresentar-lhe nosso problema. Não há água encanada, estamos geladas, sujas e aí? Que sugere a senhora, hein, Matusalém? Bucket. Hot water. Extra money. Ok, ok. Já é algo. Um balde de água fervente, outro de água fria, muitos berros de frio ecoando pelos aposentos, fantasmas reclamando do barulho, uma farra. Era desesperador tomar banho de caneca naquele gelo de banheiro. Mas era hilário ver minha irmã se contorcendo de frio enquanto eu esperava minha vez. Éramos as únicas hóspedes, então, podíamos gritar a vontade. A senhorinha e sua neta dormiam quase ao relento, na beirada do átrio, seguindo o costume indiano de dormir em camas trançadas de tecido, sem colchão. Toda encolhidinha e coberta, parecia uma criança de tão pequenina.
Dia seguinte saímos em busca de aventura, que se iguala a encrenca, mesmo quando não temos a intenção. Vamos visitar todos os templos, fortes, castelos de marajás, tudo, tudo, tudo. Que ânsia de conhecimento! Que sede de explorar! Oh! Para isto, vamos contratar logo um motorista de rickshaw para ganharmos tempo e não nos perdermos por aí. Ok. Mostramos a ele nosso roteiro, pesquisado na noite anterior, nos guias que tínhamos disponíveis. Ele balançava a cabeça, querendo mostrar que discordava das nossas escolhas. Bom, meu amor, vai nos levar ou não? Sim, sim, levo. Mas não. Na prática ele dizia uma coisa e bem, fazia o que a comissão que ele recebia melhor lhe convinha. Antes do turismo, vamos passar na lojinha do Raj. Nãoooo, queremos turismo. Rapidinho, só tomar um chá. E lá estamos nós, Raj mostrando o que tinha, nós tomando chai, queremos ir embora. Ok, madam. Pra onde? Pro templo do pirlimpimpim. Ok. Mas antes passemos no restaurante de uma amigo, o Arjun , que quer conhecê-las. Mas filho, ele nem sabe que a gente existe... Sabe sim! Só um chai, não demoramos. E lá estamos nós, raptadas e mal humoradas. Pela última vez, amigo motorista, queremos ir a um templo, a um forte, a um castelo de marajá! Queremos ser turistas! Ok, Ok, agora é sério. Vou levá-las.... só.... que.... não!!! Hahahaha. Tolinhas, vamos passar na fábrica de tecidos do meu queridíssimo amigo Gopal. As mantas mais lindas, de pura lã. Os sáris mais cobiçados. Mas vocês podem tomar.... chai, se quiserem. Chegamos a entrar na fábrica de tecidos, mas assim que começaram a desmontar as prateleiras pra vermos as peças enormes e caríssimas, nos entreolhamos e dissemos, plano de fuga! Raj começou a correr atrás da gente e tentar nos convencer de voltar. Mas não, Raj. Chega. Agora é tarde demais. Acabou o amor. Você mentiu demais. Adeus, Raj! Adeus! Não nos procure, jamais. Desnecessário dizer que ele ficou contrariadíssimo e bravo conosco.
Fomos em busca de outro rickshaw. Outro amor bandido. Mas o lugar era meio ermo. Não tinha nada por ali. A salvação imediata foi o ônibus mais kitsch que passava naquela hora de desamparo locomotivo. Paramos o ônibus colorido, adornado por um altar de luzes pisca-pisca, flores de plástico, molduras cintilantes e pinturas de Krishna, Ganesha e afins. Um passeio antropológico e sem destino certo. Downtown? Cabecinhas balançando. Sim? Não? Talvez? Ah, vamos lá. Estamos perdidas, sigamos o gps do acaso. Paramos em um mercado animadíssimo com música ao vivo, estrelando três senhores de turbante vermelho, tocando instrumentos que desconheço ou não me recordo bem. Eles nos olhavam e se divertiam com nossa insinuação de dança. Fomos tomando coragem e atravessamos o mercado a céu aberto ensaiando passos debochados e nos divertindo mais e mais a cada expressão de espanto ou encorajamento. Nosso itinerário foi quase todo escoado pelos desencontros e segundas intenções do nosso querido Raj, mas ainda havia luz e energia, portanto vamos a algum lugar pra chamar de templo. Ou forte. Ou castelo de marajá. Mais um rickshaw e sua precisão suíça e lá estamos nós. Aonde? Não sei. Onde estamos, sr. motorista. Balança a cabeça, aponta para uma construção maravilhosa do outro lado da pequena estrada e mostra. Como se fosse óbvio. Estamos em frente a este lugar. Eu paro aqui, junto a outros motoristas. Bebo meu chai. Jogo conversa fora. Vocês vão até do outro lado, pagam o ticket, visitam e voltam. Já tínhamos desconfiado a esta altura que havia mais de um nome pra cada lugar que queríamos ver. Mas queríamos saber o-no-me-do-lo-cal-em-que-es-tá-va-mos... Qual o mal nisto, gente? Que agonia! Ok. Este cara não vai nos dizer. Ele quer se ver livre da gente pra encher a cara de chai. Vamos parar outra pessoa e perguntar. Assim a gente pode ticar da nossa lista, pronto, aqui já viemos. Sr. Por favor. Onde é este lugar? E apontamos pro lugar lindíssimo pra onde nos dirigíamos. Ele olhou. Olhou pra nós de volta. Nada. Hein? Onde é aqui? Nada. Pelo amor de deus, onde estaaaaaaaamoooooooossss? Here, madam? INDIA!!!!!