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sábado, 21 de junho de 2014

A chuva de arroz azedo: uma crônica curta e ESCATOLÓGICA (aviso em letras garrafais para os fracos de estômago).

           Saindo de Xiahe, situada à província de Gansu, China, uma cidade extremamente isolada onde eu e Virginie visitamos o maior monastério tibetano fora do Tibete e que - sim, merece sua crônica própria - perdemos o ônibus que nos levaria à Lanzhou. Não fosse pela francesinha arretada e planejada, eu, brasileira perdida no tempo e espaço, talvez ainda estivesse perdida a milhares de quilômetros dali, ainda pensando qual das centenas de rotas traçar pelo quebra-cabeça intrincado que um país de dimensões continentais pode conter. Pois poucas semanas antes, nos encontraríamos em um trem noturno para Pyingao, a cidade do sistema bancário e eu compraria a sua ideia de seguir a Rota da Seda. Não, não é uma rota de maconheiros em busca de papel para enrolar "unzinho", hahaha. Na verdade, historicamente, houve várias rotas. Elas se interligavam pela Ásia do Sul e eram usadas no comércio de seda entre o Oriente e a Europa. Mas uma das rotas se destaca turisticamente e tem seu início no território chinês. E foi por ela que nos embrenhamos, começando uma aventura sem igual, que até hoje me enche de alegria  ao buscá-la na memória.
        Lanzhou, a cidade para a qual nos dirigíamos, não tinha nenhum grande atrativo em si, mas seria estratégica para visitarmos outros lugares e fazermos de base para um ou dois lugares. E para esta cidade perdemos nosso amado ônibus das seis da manhã... Pois nos enfiaram no ônibus seguinte, talvez nem tão confortável como gosto de fantasiar que teria sido o que perdemos. Bom, era o típico cata-osso e gaiola de galinhas que é fácil de se imaginar. Bagagens? Lá no teto do ônibus, do lado de fora, cabelos ao vento, porque dentro já havia trecos demais para acomodar. Um pulgueiro. Lamentável. Mas seriam apenas 150 quilômetros. Eaaaaasy. E lá vamos nós. Galerinha chinesa dos dentes podres fumando horrores já às oito da matina. Dentro do ônibus, claro. Por que não? Janelas fechadas... já que o frio era intenso. Não seria a primeira nem a última briga com chineses fumantes dentro de lugares claustrofóbicos como ônibus e vagões de trem. "Vamos parar de fumar! Vamo bota ordi nessa zona!". E sempre riam da nossa cara fazendo mímica pra apagarem os cigarros. Dentes pretos e hálito puro. Vai ser foda. 150 quilômetros, pára um pouquinho, respira um pouquinho, 150 quilômetros.... Aceitemos, vai ser um inferno. E a estimativa era a de fazer 150 km em aproximadamente 7 horas!!! O destino é a jornada em si. Dizem os sábios. Porque os sábios.... meus amigos... não tomaram este ônibus. 
        O motorista parava a cada 500 metros. Para embarque e desembarque de passageiros, hortifruti, malas, pequenos animais, objetos voadores não identificados, bigornas, próteses mamárias, refil de creme anti-celulite, descarte de camisinhas usadas, tu-do. Começamos a nos irritar profundamente. A super lotação se fazia sentir. A área era totalmente rural e o transporte devia ser escasso. Nós nem tínhamos direito de nos irritar, mas era um exercício de supremo auto-controle. Mudávamos de assento, mas não encontrávamos posição. Brigamos com o cobrador, xingamos a mãe dele, a mãe do juiz, a mãe de todo mundo... menos a minha, e acho que a da Virginie, não me lembro bem. Daí consegui um lugarzinho no corredor. Virei minhas pernas pro lado de fora, pois elas não cabiam no espaço pequeno. Recostei a cabeça do encosto da poltrona. Sabia que Virginie tinha conseguido um lugar na última fileira, mas que estava presa pois tinha um cara do lado dela com algo muito pesado no colo e ele mal se mexia. Acho que até cochilei. Haveria a paz reinado? Foi quando ouvi as trombetas anunciando o dilúvio. O cara de trás vomitou na minha cabeça. Ele se levantou e vo-mi-tou na minha cabeça recostada como um anjo dormente. Pausa para digerir o acontecido. 

         Eu não podia crer! Fiquei pasma, sem reação. Senti uma ânsia enorme, mas me recusei a vomitar. Seria um show de horrores. Um vômito em dominó que só pararia quando alguém morresse afogado. O cara vomitou em umas três pessoas mas a cabeça era minha! Estava com um rabo de cavalo, o que no final acabou ajudando. Era uma chuva de arroz: azedo. Eu olhava pra ele, vestido naquele uniforme azul marinho que eu não faço ideia do que seja, olhando pro nada, com cara de idiota e sem esboçar qualquer reação. Ele não se desculpou, não tentou ajudar, não se moveu. Ficou olhando pro nada, meio babado, e eu quis socá-lo. Principalmente pela falta de reação. Todos olhavam pra ele, falavam algo, reclamavam, mas ele lá, catatônico. Busquei meus lencinhos umedecidos, fiz o que pude com eles. Virginie queria ajudar, mas estava presa ao lado do cara que carregava o trator. Levantei-me, fiquei com aquela cara de tonta, vomitada, vesga de tão enjoada. Achei outro lugar pra sentar. Um pouco amedrontada pois tinha visto a mulher do assento de trás pedir sacolinhas o tempo todo pra vomitar. Ela pegava uma sacola, abaixava a cabeça e bleeeergh. Pensei, menos mal. Esta daí tá se precavendo. Até que... o cara do meu lado, em frente à ela, levanta os pés e começa a xingá-la. Acho que ele gritava algo assim: " Sua vaca, você estava vomitando no chão o tempo todo fingindo que era nas sacolinhas, sua porca nojenta, agora o chão do ônibus esta todo lavado com este seu vômito verde-baço, sua annnntaaaa!!!". Ufa. Foi um tsunami. O chão ficou lavado. Conforme o ônibus se mexia o vômito seguia seu movimento em uma poça gigante. Não conseguia acreditar naquilo. Estava em choque. Como ela pode fingir por tanto tempo? Como cabia tanta coisa dentro dela? Sério, a ciência deveria estudar aquela mulher... e depois congelá-la...(viva). Finalmente as pessoas se rebelaram um pouco. Porque eita povo indiferente ao que lhe acontece! Mas de nada iria adiantar naquele ponto. A viagem estava na metade. Ninguém iria limpar o chão do ônibus. Não havia o que fazer. A não ser.... passando por uma cidadezinha, olhei pra Virginie atrás da peça de trator no colo do cara e disse, vamos saltar! A gente dá um jeito! Não fico mais um minuto aqui dentro! Fui... E ela me seguiu. E agarramos nossas coisas, nossas mochilas cobertas por uma camada de terra, meu cabelo duro de vomito seco, a pobre Virginie torta por não conseguir se mover no assento... A cidade era Linxia. Não creio terem visto muitos turistas por ali. Tomamos um chá em um restaurante-açougue. Negociamos um táxi na língua do "P", seguimos felizes e saltitantes por mais 75 km, pensando sermos duas estrelas de Bollywood. 
              Há coisas que o dinheiro não pode comprar. Mas as que ele pode... valem mais que mil lencinhos umedecidos em um ônibus na China! Alegria de pobre é escapar de vômito!