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terça-feira, 8 de julho de 2014

Camden Town - Um poema.

Tirei um poema do baú. De quando morei em Londres. E estava apaixonada. Foi escrito no mercado de Camden Town, em algum bar. Por uns instantes apenas, deixo a crônica e descanso na poesia. Pra quem dela não gosta, aguarde a próxima crônica, que ela vem sim.



Flores de madeira
à beira do canal.
Gotas de plástico colorido
segundos de duração diversa.
Não que eu os queira levar a mal.
Meus olhos tudo fitam
- nervoso nervo óptico -
mas em nada repousam.
(procuram um certo olhar,
que tarda, que tarda).
Objetos day-by-day
em texturas mesmas e outras:
cotidiano repensado.
Minhas mãos se divertem
boiando, abrindo, roçando,
mas procuram outras mãos
que escorregam de tão leves,
esquivando-se
e se quebraram.
Minha boca se pretende oca
dura, seca, solta.
Já não procura alguma outra boca.
Morreu... (ou está louca?).
Fica rindo e rodopiando.
Sprayando notas musicais
de um incenso tailandês.
Quero sentir de vez o perfume
daquele colo, que meu braço não alcança.
Em Camden os sentidos se deixam enganar,
a essência é que está intacta e irredutível.
Escorre, sub-reptícia.
Acumula-se,
exalando o nonsense
de uma paixão mal dissimulada.






sábado, 21 de junho de 2014

A chuva de arroz azedo: uma crônica curta e ESCATOLÓGICA (aviso em letras garrafais para os fracos de estômago).

           Saindo de Xiahe, situada à província de Gansu, China, uma cidade extremamente isolada onde eu e Virginie visitamos o maior monastério tibetano fora do Tibete e que - sim, merece sua crônica própria - perdemos o ônibus que nos levaria à Lanzhou. Não fosse pela francesinha arretada e planejada, eu, brasileira perdida no tempo e espaço, talvez ainda estivesse perdida a milhares de quilômetros dali, ainda pensando qual das centenas de rotas traçar pelo quebra-cabeça intrincado que um país de dimensões continentais pode conter. Pois poucas semanas antes, nos encontraríamos em um trem noturno para Pyingao, a cidade do sistema bancário e eu compraria a sua ideia de seguir a Rota da Seda. Não, não é uma rota de maconheiros em busca de papel para enrolar "unzinho", hahaha. Na verdade, historicamente, houve várias rotas. Elas se interligavam pela Ásia do Sul e eram usadas no comércio de seda entre o Oriente e a Europa. Mas uma das rotas se destaca turisticamente e tem seu início no território chinês. E foi por ela que nos embrenhamos, começando uma aventura sem igual, que até hoje me enche de alegria  ao buscá-la na memória.
        Lanzhou, a cidade para a qual nos dirigíamos, não tinha nenhum grande atrativo em si, mas seria estratégica para visitarmos outros lugares e fazermos de base para um ou dois lugares. E para esta cidade perdemos nosso amado ônibus das seis da manhã... Pois nos enfiaram no ônibus seguinte, talvez nem tão confortável como gosto de fantasiar que teria sido o que perdemos. Bom, era o típico cata-osso e gaiola de galinhas que é fácil de se imaginar. Bagagens? Lá no teto do ônibus, do lado de fora, cabelos ao vento, porque dentro já havia trecos demais para acomodar. Um pulgueiro. Lamentável. Mas seriam apenas 150 quilômetros. Eaaaaasy. E lá vamos nós. Galerinha chinesa dos dentes podres fumando horrores já às oito da matina. Dentro do ônibus, claro. Por que não? Janelas fechadas... já que o frio era intenso. Não seria a primeira nem a última briga com chineses fumantes dentro de lugares claustrofóbicos como ônibus e vagões de trem. "Vamos parar de fumar! Vamo bota ordi nessa zona!". E sempre riam da nossa cara fazendo mímica pra apagarem os cigarros. Dentes pretos e hálito puro. Vai ser foda. 150 quilômetros, pára um pouquinho, respira um pouquinho, 150 quilômetros.... Aceitemos, vai ser um inferno. E a estimativa era a de fazer 150 km em aproximadamente 7 horas!!! O destino é a jornada em si. Dizem os sábios. Porque os sábios.... meus amigos... não tomaram este ônibus. 
        O motorista parava a cada 500 metros. Para embarque e desembarque de passageiros, hortifruti, malas, pequenos animais, objetos voadores não identificados, bigornas, próteses mamárias, refil de creme anti-celulite, descarte de camisinhas usadas, tu-do. Começamos a nos irritar profundamente. A super lotação se fazia sentir. A área era totalmente rural e o transporte devia ser escasso. Nós nem tínhamos direito de nos irritar, mas era um exercício de supremo auto-controle. Mudávamos de assento, mas não encontrávamos posição. Brigamos com o cobrador, xingamos a mãe dele, a mãe do juiz, a mãe de todo mundo... menos a minha, e acho que a da Virginie, não me lembro bem. Daí consegui um lugarzinho no corredor. Virei minhas pernas pro lado de fora, pois elas não cabiam no espaço pequeno. Recostei a cabeça do encosto da poltrona. Sabia que Virginie tinha conseguido um lugar na última fileira, mas que estava presa pois tinha um cara do lado dela com algo muito pesado no colo e ele mal se mexia. Acho que até cochilei. Haveria a paz reinado? Foi quando ouvi as trombetas anunciando o dilúvio. O cara de trás vomitou na minha cabeça. Ele se levantou e vo-mi-tou na minha cabeça recostada como um anjo dormente. Pausa para digerir o acontecido. 

         Eu não podia crer! Fiquei pasma, sem reação. Senti uma ânsia enorme, mas me recusei a vomitar. Seria um show de horrores. Um vômito em dominó que só pararia quando alguém morresse afogado. O cara vomitou em umas três pessoas mas a cabeça era minha! Estava com um rabo de cavalo, o que no final acabou ajudando. Era uma chuva de arroz: azedo. Eu olhava pra ele, vestido naquele uniforme azul marinho que eu não faço ideia do que seja, olhando pro nada, com cara de idiota e sem esboçar qualquer reação. Ele não se desculpou, não tentou ajudar, não se moveu. Ficou olhando pro nada, meio babado, e eu quis socá-lo. Principalmente pela falta de reação. Todos olhavam pra ele, falavam algo, reclamavam, mas ele lá, catatônico. Busquei meus lencinhos umedecidos, fiz o que pude com eles. Virginie queria ajudar, mas estava presa ao lado do cara que carregava o trator. Levantei-me, fiquei com aquela cara de tonta, vomitada, vesga de tão enjoada. Achei outro lugar pra sentar. Um pouco amedrontada pois tinha visto a mulher do assento de trás pedir sacolinhas o tempo todo pra vomitar. Ela pegava uma sacola, abaixava a cabeça e bleeeergh. Pensei, menos mal. Esta daí tá se precavendo. Até que... o cara do meu lado, em frente à ela, levanta os pés e começa a xingá-la. Acho que ele gritava algo assim: " Sua vaca, você estava vomitando no chão o tempo todo fingindo que era nas sacolinhas, sua porca nojenta, agora o chão do ônibus esta todo lavado com este seu vômito verde-baço, sua annnntaaaa!!!". Ufa. Foi um tsunami. O chão ficou lavado. Conforme o ônibus se mexia o vômito seguia seu movimento em uma poça gigante. Não conseguia acreditar naquilo. Estava em choque. Como ela pode fingir por tanto tempo? Como cabia tanta coisa dentro dela? Sério, a ciência deveria estudar aquela mulher... e depois congelá-la...(viva). Finalmente as pessoas se rebelaram um pouco. Porque eita povo indiferente ao que lhe acontece! Mas de nada iria adiantar naquele ponto. A viagem estava na metade. Ninguém iria limpar o chão do ônibus. Não havia o que fazer. A não ser.... passando por uma cidadezinha, olhei pra Virginie atrás da peça de trator no colo do cara e disse, vamos saltar! A gente dá um jeito! Não fico mais um minuto aqui dentro! Fui... E ela me seguiu. E agarramos nossas coisas, nossas mochilas cobertas por uma camada de terra, meu cabelo duro de vomito seco, a pobre Virginie torta por não conseguir se mover no assento... A cidade era Linxia. Não creio terem visto muitos turistas por ali. Tomamos um chá em um restaurante-açougue. Negociamos um táxi na língua do "P", seguimos felizes e saltitantes por mais 75 km, pensando sermos duas estrelas de Bollywood. 
              Há coisas que o dinheiro não pode comprar. Mas as que ele pode... valem mais que mil lencinhos umedecidos em um ônibus na China! Alegria de pobre é escapar de vômito!





sexta-feira, 30 de maio de 2014

De propostas (quase) indecentes e outras bobagens.

    Há mais de mês sem postar nada... sinto-me mais triste por não ter tido muito tempo pra fazer o que gosto: escrever, do que por publicar, propriamente dito. Mas mesmo depois de um dia (uma semana, um mês... um ano?) atribulado, sobra-me um pouco de energia e disposição para rever alguns emails antigos e reescrever alguns trechos, reaproveitando os rascunhos de relatos wanna-be-blog. Para minha sorte, muita coisa se salva. E hoje limito-me a editar e alterar algumas coisas apenas, para alimentar meu prazer de dividir com vocês estas façanhas remotas, tão caras a mim. Amo-as todas, como  filhas idas. Não sei se hoje teria a mesma coragem de viver tão errante, tão certeira de mim. E nem a coragem de expô-las a tantas pessoas que me leem anonimamente. Mas certamente tenho o mesmo prazer em compartilhá-las.

    Lê-se em um ou muitos emails:

 "Namastê, Pessoas Queridas e Jamais Esquecidas,

   Vocês me pediram e eu não escrevi. Agora ninguém me pediu, mas  escreverei assim mesmo, porque sinto que, de outra forma, serei brevemente relegada a uma andarilha brasileira perdida na Ásia.
  Desde o último email na China  muitas histórias aconteceram. Passei por Laos - que, ao contrário do que muitos pensam, não é um estado da China, (mas sim um lindo país), Camboja, Tailândia e agora.... Índia, madam. Talvez consiga resgatar na memória algumas passagens destes países incríveis e, posteriormente, encherei mais uma vez a caixa de email de vocês com meus famigerados 'relatos infames', de quem não tem trabalho, nem filhos, nem casa pra limpar, em outras palavras, uma desocupada.

   Há 6 anos exatamente estive na Índia. Desta vez, ao chegar, notei algumas mudanças. A expansão do aeroporto, que agora conta com inúmeras lojas duty-free e não tem mais as lindas flores de plástico nas mesas de imigração, nem mesmo os mesmo dizeres nos posteres de plástico, no melhor estilo auto-ajuda que os indianos tanto gostam. O mau gosto muda de figura, e me deixa nostálgica da pureza estética do que habitou, um dia, estas paredes pouco amadas.

   Ainda na Tailândia fui precavida, tão rara postura em mim, e reservei um hotel em Déli, através de um site dito confiável, para evitar ficar procurando acomodação quando chegasse, tarde da noite. A idade nos estraga mesmo! Olhe só para como foi minha primeira experiência neste país, anos atrás.... mal sabia o nome completo da minha irmã, quem diria ter uma acomodação reservada previamente! Bom, fato é que cheguei, negociei duramente com um táxi não-autorizado (a segunda vez na Índia é moleza!), assegurei-me de que o motorista realmente sabia o endereço do hotel... sure, madam! Mas sim, na Índia, é não, quase sempre. Paramos no meio do caminho para pedir informação. Paradinha estratégica em uma agência de viagens aberta 24 horas.... hum? E já queriam me enfiar mil pacotes turísticos na mesma hora. Ha! E o meu hotel? Lotado. Como assim? Fiz reserva! Azar o seu, madam. Ai ai ai... começou. Mas eu paguei as taxas todas no cartão de crédito! Soooooooooo sorrrrrry, madam. Eu amo a Índia. AMO. Vamos praticar paciência. Acabei indo pro hotel mais caro da viagem até então. Era a única mulher hospedada lá, e os indianos me olhavam como se eu fosse uma mulher branca vinda de outro continente! Por este preço, pensei, dormirei em lençóis limpinhos, fresquinhos, crocantes. Nada disto. Cabelos mil e uma nuvem negra esfumaçada no travesseiro. Sim, dos dois lados. Nada do que meu saco de dormir de seda verde-varejeira que eu comprei em Laos não pudesse me proteger. Ele me salvou de todos os lençóis gosmentos da Ásia. E, para minha surpresa e deleite... banho quente! O primeiro em meses! Um luxo só. A sujeira sai muito melhor em água quente. Nem se compara... imaginem só, eu devia estar uns 3 milímetros mais gorda só de crostas de sujeira. Saiu tudo!
   Fresca e refeita, acordo bem cedo e penso: vou fazer turismo. Turismo mesmo, de bancar a turista. Havia séculos que eu não saía com um mapa na mão e um itinerário na cabeça. A Tailândia foi uma espécie de pausa... descanso. Não aguentava mais ver templos budistas, não podia mais com ingressos, museus, nem nada. Tailândia também foi... bom, um capítulo a parte, que se chamará: "Sobre quando eu NÃO me tornei monja”, ou coisa assim. 
   Meu dia de turista em Déli não decepcionou. Há coisas belíssimas pra se ver. Tais como o Red Fort, a maior mesquita da Ásia, o super interessante National Museum, templos hindus, a cidade velha e muito, muito mais. Basta ter, pra cobrir este imenso território, um bom motorista a tira-colo. Sim, dei-me este luxo! Sentia-me como uma senhora de meia idade, americana, com seu motorista anjo da guarda e talvez, amante. Certamente não no meu caso.É evidente que, a esta altura do dia, já tinha respondido umas vinte vezes se eu era casada ou não. E o mais difícil: o porquê! Com tantas perguntas, não preciso mais de terapia, pois para cada resposta eu pensava profundamente e respondia algo diferente. Nada além da verdade, obviamente.
  Eu também já havia arranjado alguns pretendentes.Todos através do meu motorista, Jarbas das Índias, que já devia ter espalhado pros amigos que estava guiando uma mulher solteira à procura, na cabecinha doente dele.   De meia em meia hora alguém ligava perguntando quando nosso tour acabaria. 
    No dia seguinte, já pobre e à pé, decido caminhar pelos corredores infinitos de Connaught Place, paraíso dos turistas com suas lojas com preços e marcas para todos os gostos. Em questão de meia hora, um novo seguidor. Incrível. Exalaria eu ferormônios ocidentais exóticos? Teria eu cara de quem quer doar seus tesouros mais íntimos? Estava eu registrada em alguma agência matrimonial sem saber? Talvez  em alguma outra chamada Coitus proibidus? Desta vez, meu stalker foi muito cortês, educado e até sutil. Manzoon era seu nome. Começou argutamente comentando que nota o assédio que os turistas sofrem com os indianos... hum.... providencial. Disse que devia ser desgastante e coisa e tal. Sendo ele turista em Deli também, pois sua cidade ficava bem distante de Deli, pensei se ele sofreria o mesmo assédio, vingativa que sou. Fomos a um café. Hoje há cafeterias deliciosas aqui. Fomos a várias livrarias e hum, até aceitei jantar com ele depois de alguma - sempre educada - insistência. O inevitável teve um certo tom histérico. Ao final do jantar Manzoon estava atacado, alterado, beirando mesmo a histeria, querendo que eu tomasse o avião no dia seguinte com ele para Manali, a cidade onde ele mora! Pode? Pode sim. Perdi naquele momento toda a fé nos indianos, se é que cheguei a ter alguma. É claro que eu não vou voar com você para sua cidade amanhã!! Está louco? Ele se sentiu ultrajado e saiu do restaurante ventando, quase sem se despedir de mim. Mas estou aprendendo... aos pouquinhos. É só dizer Shanti, Shanti quando algo dá errado e a outra pessoa se estressa, na tentativa de acalmá-la. Cada vez que alguém me diz isto, tem o efeito rebote, e eu me sinto muito mais irritada do que antes! 

    Agora estou em Rishkesh, cidade à beira do sagradéééérrimo Rio Ganges, que também é uma deusa, que veio para salvar o mundo e purificar os homens. O rio aqui é limpo e cristalino, pois está aos pés dos Himalaias, distante de sua nascente apenas 200 km. Depois, pelo que sei, e vocês também, ele torna-se um rio sujíssimo, fedidíssimo, poluidíssimo, mas continua sendo sagradérrimo e continua purificando os pecados. Entre pecadora e imunda, prefiro o primeiro. 
   Esta cidade charmosa, com belas vistas das montanhas e do rio Ganga - como aqui é chamado - ficou famosa com os Beatles, sim, aqueles lá, nos anos bolinha, porque eles vieram visitar o então guru deles, Maharishi, que levou a meditação transcendental para o ocidente (e nunca mais trouxe de volta). Além disto, é o berço do Yoga, e tem um sem número de ashrams que são escolas e templos ao mesmo tempo, onde as pessoas praticam yoga, meditação e sei lá mais o que. Isto faz com que o local, no caso, acho que o país todo, esteja cheio de turistas-viajantes-com-cara-de-bolo-de-fubá-mal-cozido. O que eu quero dizer com isto? Bem...vejamos. A verdade é que isto aqui atrai um tanto de gente esquisita. Tá certo, eu estou aqui e devo ser lá bem esquisita, mas acreditem se quiser, há gente mais esquisita do que eu! Andando pelas ruas, ruelas, escadarias e afins, além de vacas você encontra aquelas pessoas com cara de santo, olhar perdido no horizonte, como quem diz "ahhhhhhh,eu estou iluminaaaaaaadooooo...".Ai, dai-me paciência. E a maioria se veste com roupas indianas dos pés à cabeça. Eles usam mais roupas indianas do que os próprios indianos! Não é o máximo? E claaaaaaaaaro, terceiro olho colado na testa, anéis em todos os dedos dos pés, das mãos, do nariz, das orelhas, ahhh, que lindos!... Quanto a cara-de-bolo-de-fubá-mal-cozido, junte a cara de 'sou iluminado', com 'sou bom moço ou boa moça'e roupas de tons beeeem pastéis, azulzinho, amarelinho, cruzinho, branquinho... é isto que eles usam. Não dá vontade de bater? 
   Bom, então o que eu, um ser tão não-iluminado, não-cru, e bem cozida estou fazendo aqui, né? Tipo assim, se eu sou tão boa, tão fudida, o que estou fazendo neste antro de seres pseudo-yoguis? Aí é que está! Veja bem, não olho pro próprio umbigo! Estou fazendo um curso de massagem ayurvedica. Aí, pronto, falei. Confessei. Pra piorar, olha o nome: massagem ayurvedica. Não é o máximo do tal bolo de fubá? Mas eu tenho certeza de que todos gostariam de experimentar a massagem. Hoje foi minha primeira aula, começamos pelos pés. Imaginem vocês, a sujeira de um pé bem indiano com óleo misturado. Mas nesta aula de hoje só estávamos eu, o professor e uma amiga canadense que mora aqui. Ou seja, que também tem pés indianos. Então éramos 4 pés sujos e 2 limpos. 20 artelhos sujos e 10 limpos. E assim sucessivamente. Mas quem está na Índia é pra se sujar. Amanhã subiremos para as pernas. Depois de amanhã, ... meu professor disse para irmos mais cedo, por que será?"






segunda-feira, 14 de abril de 2014

Pequena Fábula para ilustrar o Crônicas...

De Passagem

Um viajante chegou a uma humilde cabana, onde se dirigiu pedindo água e pousada. Quando chegou foi recebido por um monge que lhe ofereceu acolhimento. Ao reparar na simplicidade da casa e sobretudo na ausência de mobília, curioso indagou:
- Onde estão os teus móveis?
- Onde estão os teus? - devolveu o monge.
- Estou aqui só de passagem - respondeu o andarilho
- Eu também...

domingo, 6 de abril de 2014

Sobre turistas, viajantes e Dilma Roussef. Com uma pitada de cotovelos nos peitos das mulheres.

Há pessoas que dizem que viajar tem que ser fácil. Confortável. Luxuoso, até. Que privações e desafios não combinam com o propósito de viajar. Que seu objetivo principal deve ser o de desfrutar. Concordo com elas, parcialmente. Adoro me hospedar em um hotel charmoso, com vista encantadora e ir à bares descolados e restaurantes surpreendentes. É ótimo fazer uma trilha arriscada montada num 4 x 4 com ar condicionado, dirigido por um guia experiente, tomando uma cerveja gelada e desfrutando da paisagem, sem grandes preocupações. Creio que deva ser fantástico  hospedar-se  num resort 5, 6, 12 estrelas numa praia paradisíaca. No entanto, na maioria das vezes, por questões financeiras ou mesmo por filosofia, opto pelo lado B das viagens. Claro que depende do destino e da duração dela. Quando estive em Cuba pude me dar ao luxo de não ter luxos e conhecer, por exemplo, praias frequentadas pelos nativos, enquanto os resorts desconhecem o racionamento vivido pelos habitantes da ilha e proíbe a entrada dos mesmos, mesmo que apenas na faixa de areia. Segregação deslavada. Foi muito mais enriquecedor ver o lado de lá. Tive tempo e oportunidade pra viajar a ilha de norte a sul e de sul a norte, novamente, passar por cidadezinhas aparentemente sem atrativos e dormir na casa de cubanos, comer à sua maneira, dançar em suas Casas de la Trova ou Casas de la Musica, viajar de ônibus, de carona, ou improvisadamente com restos de bagaço de laranja na traseira de um caminhão. Passar por apertos não faz de você necessariamente uma pessoa melhor. Mas pode ser muito, muito enriquecedor. É, sem dúvida, uma oportunidade para reflexão. Deixo claro aqui a diferença essencial entre ser um turista e um viajante. O turista não tem tempo a perder. Não quer reflexão. Quer que tudo funcione perfeitamente, o voo, o traslado, o hotel, o táxi, o restaurante. O tempo é curto. Obviamente  quer aproveitar o máximo. O viajante tem tempo. Não está preso em um roteiro pre-estabelecido por um pacote turístico ou pela revista especializada. Ele cria tempo dentro do tempo. Prioriza e elege baseado em outros preceitos. Mainstream não é seu foco. As duas vezes em que estive na Índia optei por não ir ao Taj Mahal. Não que eu não queira conhecê-lo. Mas as situações pediam outras escolhas e não abri mão delas para dizer que visitei o cartão postal mais famoso de lá sem estar no clima. Afinal, não sou a Dilma (a Roussef, presidente desta nossa pátria), que fechou o Taj somente para ela em um dia comum, para rodopiar sozinha pelos espaços vãos da beldade arquitetônica. Imaginem só a minha ira se eu  tomasse o ônibus fedido de umas doze horas de Déli, fosse meio de má vontade à Agra, enfrentasse todo o circo caça-niquel-de-turista na rodoviária, rumo ao mausoléu e então, lá chegando, filas embatumadas de gente se acotovelando, descobrisse que a visitação estava suspensa porque uma tal presidente sul-americana estaria lá dentro rodopiando nas pontinhas dos pés? Sangue nos olhos... Onde estaria a sapiência do viajante neste hora, hein? Porque, ao contrário do turista, o viajante não se enfurece com os contratempos. Eles traçam contornos incríveis aos roteiros. Às vezes mil vezes mais interessantes que o planejado! A não ser no caso do contratempo com a Dilma. Enfim, em um mundo tão fast-food, ter a chance de viajar como um approach menos consumista e imediatista é uma dádiva. Do Lord Ganesha.
p.s. Quando comentei com a minha irmã que a crônica de hoje não contaria com meu veio mais humorístico, dado o meu estado de espírito mais taciturno dos últimos dias, ela me pergunta: porque você não fala sobre os cotovelos nas tetas? Hahahahaha, mana. Obrigada pela lembrança. Mesmo que não tenha absolutamente nada a ver com o tema de hoje, como não lembrar do recalque dos indianos desesperados por sexo com estrangeiras, desesperados por sexo, desesperados... esticando os cotovelos na direção dos nossos peitos, enquanto passávamos por eles, pra tentar tirar uma casquinha de nada dos nossos ... das nossas.... glândulas mamárias??? Ela apelidou a prática de "Cototeta", e cremos ser uma espécie de esporte praticado por lá, quase ou tão popular quanto o críquete, mas ainda praticado apenas por homens. Índia é assim. O improviso e a sobrevivência deixando os brasileiros no chinelo.

Dilma toda pimpona no Taj. Antes da dancinha. 



sábado, 15 de março de 2014

“Voyage, travel, and change of place impart vigor” – Seneca


 “Travel teaches toleration.” – Benjamin Disraeli 


 “The World is a book, and those who do not travel read only a page.” – Saint Augustine



 “Travel, in the younger sort, is a part of education; in the elder, a part of experience.” – Francis Bacon


 “If you wish to travel far and fast, travel light. Take off all your envies, jealousies, unforgiveness, selfishness and fears.” – Cesare Pavese


”Twenty years from now you will be more disappointed by the things that you didn’t do than by the ones you did do. So throw off the bowlines. Sail away from the safe harbor. Catch the trade winds in your sails. Explore. Dream. Discover.” – Mark Twain

quinta-feira, 6 de março de 2014

Os Piores Banheiros do Mundo - Os Chineses.

          Em um país de superlativos, aonde os maiores, menores, talvez os melhores se reúnem, não é difícil deduzir que também os banheiros se apresentem da mesma forma. São os piores - do mundo! Talvez vocês se perguntem, diante da audácia de tal afirmação, "será que ela cagou ao redor do mundo todo?". Não, meus queridos, mas assim como você simplesmente SABE que encontrou o grande amor da sua vida, você simplesmente SABE que não há como haver algo pior. É uma certeza quase espiritual, absoluta e monolítica. 

         Em primeiro lugar, assim como em quase todos países da Ásia, você tem que se acocorar, agachar-se com as pernas abertas, procurando um delicado equilíbrio, especificamente difícil pra quem tem problemas no joelho, na coluna, ou outro não especificado por ignorância. Em inglês, squat toilet. 

          Então, apesar da super-generalização "banheiro de cócoras", existem sub-divisões que os fazem especialmente peculiares: 

1 - Não existem portas, porque, ao que me parece, defecar, urinar e - qual seria a palavra politicamente correta para 'peidar'?  - e todos os atos escatológicos na China  são de conhecimento público, sem grandes constrangimentos, ou ainda, sem constrangimento algum!

2 - As divisórias entre as valas, ou buracos são laterais e muito baixas. Isto, muitas vezes, faz com que você possa ver a expressão de dor, de alívio ou mesmo de indiferença da sua companheira de atividade. Um estudo antropológico da comunicação não verbal. 

3 - É muito comum que enquanto acocoram-se e aliviam-se, as chinesas (e os chineses também, creio) aproveitem para dar aquela deliciosa escarradinha básica, uma vez que estão ali, sem fazer nada mesmo. Cuspir e escarrar é um hábito amplamente difundido pela Ásia como um todo. Merecem um capítulo próprio, para estes atos, tão ... naturais da espécie humana. 

4 - Nunca há papel higiênico. Nunca. Nunca. Nunca mesmo. Por isto jamais esqueça de levar o seu próprio. Tive o desprazer de me esquecer de levar o meu, logo nos primeiros dias na China e, por estrita emergência, tive que usar meu mapa de Pequim, único papel na bolsa. Assim, só pude navegar metade da cidade, a metade que não foi poluída pelo... desnecessário dizer. 

5 - Há alguns 'modelos' de banheiros em que uma vala comum passa por todas as 'cabines' ao mesmo tempo (palavra aqui usada sem a ideia de privacidade usualmente a ela atribuída). Neste caso você se posiciona lateralmente para a 'porta' da cabine, e vê a nuca da sua vizinha da frente. E não a lateral do rosto, como em outros modelitos mais comumente construídos. Assim, a vala comum permite que, se houver água, esta vá movendo todas obras de arte da pessoa à sua dianteira, ou à sua traseira. (Opa, chega mais pra lá!). Isto vai depender da direção do fluxo da água. Você pode ver, cheirar e, se quiser, até analisar o que a autora da obra comeu no dia anterior. Muito solicitamente, você pode até, caso saiba chinês, lançar o comentário: "Querida, você precisa comer mais fibras!". 

6 - Há os protótipos mais toscos, como os rurais e os de beira de estrada. em que não há água corrente, ou descarga (em alguns lugares há descarga sem água, por sucção, penso eu). Nestes exemplos mais rudimentares não há nem mesmo a louça, mas sim um buraco na terra ou na madeira, como as antigas fossas na fazenda ou mesmo em cidades de outrora. O problema, se é que há somente um, é que estes buracos não são suficientemente fundos, o que faz com que o depósito de dejetos - humanos e não-humanos (papéis, lenços, absorventes,etc etc etc) se acumule e cresça: em direção à você! Parabéns! Você acabou de ganhar o passaporte para o inferno. Estes, sem dúvida alguma, são os piores, já que o odor é insuportável e as moscas se debatem contra suas nádegas, enquanto você tenta desesperadamente se aliviar o mais rápido possível, temendo que alguma delas deposite um ovo bem no meio do seu... âmago. No caso destes banheiros em específico, nunca olhe para baixo, jamais, em hipótese alguma, pois a visão é aterradora e vai te perseguir por noites e noites a fio. Uma vez, na Índia, estávamos em uma espécie de camping à beira da praia. O banheiro coletivo fazia parte desta categoria. Dia e noite, noite e dia, aliviar-se era um suplício. Havia um formigueiro cujo supermercado local era exatamente nossa fossa. As saúvas queriam produtos frescos. Recém chegados do fornecedor local. Acocorar-se, mirar, não borrar as calças, escapar das saúvas assassinas e consumistas tornava-se um balé pitoresco. Parecia uma dança de uma tribo remota, bem remota, cujos passos deixariam seus ancestrais orgulhosos. 

7 - O fedor dos banheiros pode ser sentido muito antes da entrada deles. Às vezes, a inúmeros metros de distância, principalmente quando não há água e o modelito é o descrito acima. Segundo uma amiga, os banheiros chineses não são limpos desde a dinastia Ming e para limpá-los seriam necessárias duas dinastias mais! Portanto, tome suas precauções. Antes de entrar, certifique-se de: a) abrir o zíper, botões, e tudo o que possa restringir os movimentos; b) hiperventilar, o máximo que conseguir, e em seguida prender a respiração e ir com fé; c) levar o papel higiênico na mão, cortado no tamanho e /ou quantidade necessária; d) não beber álcool, se drogar, ou usar nada que altere o equilíbrio e sobriedade; e) dobrar as barras das calças e nunca usar seu sapato predileto; f) olhar bem aonde está o buraco, ou coisa semelhante antes de efetuar o ato e mirar bem; g) se necessário for, cheque duas vezes antes de atirar!

8 - Se tiver que esperar na fila, não adianta hiperventilar. Neste caso, aproveite a paisagem, vendo as chinesas, de frente ou de lado, acocoradas, com cara de tédio, fazendo o que ninguém pode fazer por elas, às vezes lendo ou mesmo fazendo palavras cruzadas. (Creio que Sudoku não seria tão indicado nestas circunstâncias). Não precisa nem disfarçar, elas não se importam. Mas se você for muito tímido ou tímida, espere todos saírem do banheiro para não haver plateia. O que creio ser bem difícil, em um país em que cada porta que se abre parecem sair cem pessoas de cada vez. 

          A arte de defecar e urinar na Ásia. Aprimore-a aos poucos. É praticamente uma meditação. Boa jornada!






segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Jaipur, Rajastão. (India, madam).

            Tudo o que ela queria era sair de Délhi. Escafeder-se. Sumir. Mas calma, mana. Acabei de chegar. Não, não, não. Vamos embora daqui. Não dá pra ficar em cidade grande assim. E gelada. Este frio está me matando. Ok. Rodoviária, vamos nós. Vamos pra onde? Rajastão. Deserto, quentinho... Jaipur seria a primeira cidade do Rajastão. E pra lá nos dirigimos, logo depois do nosso café da manhã frito e apimentado do trailer, no sacolejo de mais um  ônibus seboso e cambaleante. Pelas estradas tracejadas de asfalto e preenchidas de terra. Mochilas amontoadas no teto do ônibus, ao vento, ao relento. Sentamo-nos nos dois primeiros assentos e tínhamos a visão total da estrada. Eu mal conseguia prestar atenção nas histórias dela. Aventuras de dois meses perambulando pelo país, tanta excitação e vontade de compartilhar as novas experiências, mas eu não tirava os olhos da estrada à nossa frente. Aquele caos bem orquestrado me hipnotizava. Animais, motos, pedestres, carros, ônibus, carroças, caminhões. O zigue-zague constante e aflitivo de tantos elementos em movimento. E a buzina intermitente e ensurdecedora do nosso ônibus, que fazia eco com as dezenas ou centenas de outras buzinas dos outros veículos. Estou ficando surda, disse eu. E zonza. Muito barulho. Ahhhh, acostume-se. É sempre assim. Mulheres construindo partes das estradas, cavando e carregando pedras e feixes gigantescos de lenha na cabeça. Cadê os homens? Por que não estão trabalhando também? Trabalho pesado é coisa de mulher por aqui... Uma dentre muitas outras facetas da sociedade indiana que causam revolta. 
         Seis horas depois chegamos à capital do estado semi-desértico do Rajastão. Jaipur, também conhecida como a cidade rosa, por ser pintada em sua maioria em uma coloração, digamos, rosa... Depois de uma escolha minuciosa pelo guia, dentre as três ou quatro hospedagens mais baratas da cidade - nosso modus operandi mochileiro-sem-vergonha - escolhemos um lugar que parecia divertido: um hotel famoso no passado, cheio de glórias passadas e já um bocado passado. Mark Twain havia sido um de seus ilustres hóspedes. Uma senhora de 300 anos atendeu a porta. Nenhum dente à mostra. Enrugada, franzina (aliás, esse adjetivo tem sido e continuará sendo comum na descrição de muitos dos indianos), doce. Nos levou ao nosso quarto, depois de combinarmos o preço. Passamos pelo átrio da casa, e seguimos ao nosso quarto. Portas que davam pra varanda do átrio, entramos e nos sentimos em um ... museu. Todos os móveis pareciam tão antigos quanto o hotel. Afrescos nas paredes, o que é um pleonasmo vagabundo - porque não há afrescos em qualquer outro lugar que não nas paredes - banheira branca com pezinhos charmosos, louça antiga, cama com cabeceira antiga... tudo tão suntuoso! E podre! Tudo tinha uma camada de poeira de uns 2 centímetros. E nada funcionava, obviamente. O encanamento já havia apodrecido décadas antes. Nada além de ar passava por eles. Acho que nem o Hotel California imortalizado na música dos Eagles era tão inútil enquanto hospedagem. Empoeiradas que também estávamos, e geladas pelo inverno que castiga o deserto ao anoitecer, voltamos à senhorinha de 300 anos para apresentar-lhe nosso problema. Não há água encanada, estamos geladas, sujas e aí? Que sugere a senhora, hein, Matusalém? Bucket. Hot water. Extra money. Ok, ok. Já é algo. Um balde de água fervente, outro de água fria, muitos berros de frio ecoando pelos aposentos, fantasmas reclamando do barulho, uma farra. Era desesperador tomar banho de caneca naquele gelo de banheiro. Mas era hilário ver minha irmã se contorcendo de frio enquanto eu esperava minha vez. Éramos as únicas hóspedes, então, podíamos gritar a vontade. A senhorinha e sua neta dormiam quase ao relento, na beirada do átrio, seguindo o costume indiano de dormir em camas trançadas de tecido, sem colchão. Toda encolhidinha e coberta, parecia uma criança de tão pequenina. 
          Dia seguinte saímos em busca de aventura, que se iguala a encrenca, mesmo quando não temos a intenção. Vamos visitar todos os templos, fortes, castelos de marajás, tudo, tudo, tudo. Que ânsia de conhecimento! Que sede de explorar! Oh! Para isto, vamos contratar logo um motorista de rickshaw para ganharmos tempo e não nos perdermos por aí. Ok. Mostramos a ele nosso roteiro, pesquisado na noite anterior, nos guias que tínhamos disponíveis. Ele balançava a cabeça, querendo mostrar que discordava das nossas escolhas. Bom, meu amor, vai nos levar ou não? Sim, sim, levo. Mas não. Na prática ele dizia uma coisa e bem, fazia o que a comissão que ele recebia melhor lhe convinha. Antes do turismo, vamos passar na lojinha do Raj. Nãoooo, queremos turismo. Rapidinho, só tomar um chá. E lá estamos nós, Raj mostrando o que tinha, nós tomando chai, queremos ir embora. Ok, madam. Pra onde? Pro templo do pirlimpimpim. Ok. Mas antes passemos no restaurante de uma amigo, o Arjun , que quer conhecê-las. Mas filho, ele nem sabe que a gente existe... Sabe sim! Só um chai, não demoramos. E lá estamos nós, raptadas e mal humoradas. Pela última vez, amigo motorista, queremos ir a um templo, a um forte, a um castelo de marajá! Queremos ser turistas! Ok, Ok, agora é sério. Vou levá-las.... só.... que.... não!!! Hahahaha. Tolinhas, vamos passar na fábrica de tecidos do meu queridíssimo amigo Gopal. As mantas mais lindas, de pura lã. Os sáris mais cobiçados. Mas vocês podem tomar.... chai, se quiserem. Chegamos a entrar na fábrica de tecidos, mas assim que começaram a desmontar as prateleiras pra vermos as peças enormes e caríssimas, nos entreolhamos e dissemos, plano de fuga! Raj começou a correr atrás da gente e tentar nos convencer de voltar. Mas não, Raj. Chega. Agora é tarde demais. Acabou o amor. Você mentiu demais. Adeus, Raj! Adeus! Não nos procure, jamais. Desnecessário dizer que ele ficou contrariadíssimo e bravo conosco. 
           Fomos em busca de outro rickshaw. Outro amor bandido. Mas o lugar era meio ermo. Não tinha nada por ali. A salvação imediata foi o ônibus mais kitsch que passava naquela hora de desamparo locomotivo. Paramos o ônibus colorido, adornado por um altar de luzes pisca-pisca, flores de plástico, molduras cintilantes e pinturas de Krishna, Ganesha e afins. Um passeio antropológico e sem destino certo. Downtown? Cabecinhas balançando. Sim? Não? Talvez? Ah, vamos lá. Estamos perdidas, sigamos o gps do acaso. Paramos em um mercado animadíssimo com música ao vivo, estrelando três senhores de turbante vermelho, tocando instrumentos que desconheço ou não me recordo bem. Eles nos olhavam e se divertiam com nossa insinuação de dança. Fomos tomando coragem e atravessamos o mercado a céu aberto ensaiando passos debochados e nos divertindo mais e mais a cada expressão de espanto ou encorajamento. Nosso itinerário foi quase todo escoado pelos desencontros e segundas intenções do nosso querido Raj, mas ainda havia luz e energia, portanto vamos a algum lugar pra chamar de templo. Ou forte. Ou castelo de marajá. Mais um rickshaw e sua precisão suíça e lá estamos nós. Aonde? Não sei. Onde estamos, sr. motorista. Balança a cabeça, aponta para uma construção maravilhosa do outro lado da pequena estrada e mostra. Como se fosse óbvio. Estamos em frente a este lugar. Eu paro aqui, junto a outros motoristas. Bebo meu chai. Jogo conversa fora. Vocês vão até do outro lado, pagam o ticket, visitam e voltam. Já tínhamos desconfiado a esta altura que havia mais de um nome pra cada lugar que queríamos ver. Mas queríamos saber o-no-me-do-lo-cal-em-que-es-tá-va-mos... Qual o mal nisto, gente? Que agonia! Ok. Este cara não vai nos dizer. Ele quer se ver livre da gente pra encher a cara de chai. Vamos parar outra pessoa e perguntar. Assim a gente pode ticar da nossa lista, pronto, aqui já viemos. Sr. Por favor. Onde é este lugar? E apontamos pro lugar lindíssimo pra onde nos dirigíamos. Ele olhou. Olhou pra nós de volta. Nada. Hein? Onde é aqui? Nada. Pelo amor de deus, onde estaaaaaaaamoooooooossss? Here, madam? INDIA!!!!!





quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014


Para ilustrar como os professores de inglês são bem vindos na China.
                         


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Índia, te visito. Reloaded.

             Camila tinha estado em Goa. Estado indiano onde os portugueses haviam deixado seu legado expansionista, mas onde a língua portuguesa raramente é falada, a não ser por poucas pessoas de idade avançada. E em alguns escritos em portões de ferro, como: Família Almeida. Há um pequeno movimento jovem, nos dias atuais, que pretende manter viva a herança da língua, mas este é tímido e isolado. Mas ela não estava em Goa para praticar Português. The party girl queria curtir. Seus novos amigos viajantes, as festas sem fim, as praias. Por isto partir para encontrar a irmã causava-lhe sentimentos ambivalentes. A irmã, esta famigerada, inconveniente (eu, no caso) que não queria ir pra praia, não a via fazia um bom tempo, já que Camila morava em Brighton, na Inglaterra. Portanto, ver a irmã = feliz, deixar os amigos e a vida louca = triste. Pronto, explicada a ambivalência da personagem Camila. Ela saiu diretamente de uma rave de reveillon. Linda, louca e abalada. Teria pela frente uma viagem de ônibus de 15 horas até Bombaim, pra depois tomar um avião até Délhi e então, me encontrar. Ao chegar na rodoviária, ainda zonza da bebida e da falta de sono, descobre que seu lugar no ônibus havia sido vendido. Overbooking no sistema rodoviário indiano. O que se pode esperar de um país com tanta tanta tanta gente? Overbooking em tudo, né? Na fila da padaria, no banheiro, no parque de diversões. Tudo na Índia é over mesmo. Choro convulsivo. Eu preciso ir neste ônibus, preciso, preciso! Creio que tenho refazer a frase. Choro convulsivo e alguma histeria, imagino eu. Tenho um voo a tomar em Bombaim, minha irmã me espera em Délhi, as criancinhas famintas na África, o degelo das calotas polares, a extinção dos mamutes... ou seja, me coloquem neste ônibus, agooooooooooora.... Ela conseguiu. O motorista, tocado pelo seu desespero, ofereceu a caminha do segundo motorista, um pequeno nicho que fica ao lado do primeiro, próximo do câmbio. Minúsculo espaço impensável em qualquer país que preze a segurança dos passageiros. O segundo motorista consentiu. Não sei exatamente como se deram estes diálogos, porque até onde sei, nenhum dos dois motoristas falava inglês. O segundo motorista foi um mártir. Ele trocou sua caminha-nicho-sobre-o-painel por uma prateleira estreitíssima acima da cabeça do motorista, onde eles guardavam a própria bagagem. Sim, ele deu um jeito de caber. Acho que ele fazia bico de contorcionista. Mas Camila parecia uma ingrata. Só fazia chorar. Estava desgastada, triste, e sei lá mais que desculpa ela tem pra tanto chororô. Batman e Robin se desdobravam em agradá-la, pensando que ela se sentia mal por estar ali, exposta e fragilizada pelo assento improvisado. Creio que se o ônibus batesse, ela viraria um inseto esmagado contra o para-brisa. A dupla dinâmica comprava-lhe chá, flores frescas para colocar-lhe ao redor do pescoço, comidinhas, incenso... Serviço de primeira. Até que ela finalmente parou de chorar, horas depois. E chegou em Bombaim e tomou seu voo à Délhi e chegou em Délhi às três da tarde, e a minha metade da história foi contada na primeira crônica. Ou seja, eu havia chegado às três da manhã e já estava dormindo por exaustão em um hotel próximo ao aeroporto. Aqui um pout-pourri do que ela viveu: chega ao aeroporto, procura pela irmã, nada da irmã, espera, procura novamente, nada ainda, começa a se preocupar, busca informações, nada de informações, chora, chama atenção das pessoas, de onde você é?, Brasil, Ronaldo!, Ronaldo a puta que pariu, cadê minha irmã?, de um aeroporto a outro, ônibus capenga, nada de irmã, administração do aeroporto, a mesma mulher que ouviu meu choro, opa!, outra chorona esteve aqui na manhãzinha, buscando a irmã, cadê ela?, sei lá, caiu a ficha, 3 am / 3pm, ferrou, vou nessa, porque to com pressa. A maratona continua. Ela vai à um hospital próximo, não há estrangeiros aqui, darling. Vai à rodoviária. Chora, chama a atenção, sempre formando uma roda de curiosos, olha! uma estrangeira linda e branca chorando! Vamos até ela perguntar de onde ela é e falar o nome do primeiro jogador de futebol que a gente lembrar daquele país. Pede ajuda à polícia. Mas que empenho. Descansa um pouco, mana. Depois me procura, relaxa, estou dormindo em um hotel confortável, cheiro de curry, staff pensando que sou rica e balançando a cabecinha pras gorjetas. Mas ela é uma capricorniana obstinada. Não desiste. Um policial mal intencionado oferece ajuda. Diz que ela pagaria o táxi e ele iria a todos os lugares que ele pudesse pra coletar informações. Bom, se for assim, tudo bem, estou mesmo desesperada. Ele aproveita o táxi gratuito e começa a fazer visitas, em bairros distantes, visita amigos, parentes, credores, amantes... Algo como duas horas depois, ela o questiona. Ele responde que está tudo sobre controle. E que precisa coletar mais informações. Pobre irmã. Seu cérebro estava pasteurizado pela falta de sono, cansaço, estresse, medo, preocupação. Ela tenta conversar com o motorista que, contrariado, arrota duas ou três palavras em inglês: Bad man, your money. (Na verdade, quatro palavras em inglês). Vamos embora, ela decide. O policial volta, começa uma discussão intensa com o pobre taxista. Ainda impõe uma última carona. Livre dele, ela saca seu Lonely Planet e escolhe um hotel. Me leva aqui, por favor. Abatida, chega ao hotel-muquifo e liga pro Brasil, pra Inglaterra, pro CVV, pro programa da Márcia Goldschmidt. Horas depois, quando eu retorno das catacumbas e consigo o contato dela, o aguardado e já relatado telefonema acontece: mana? mana! mana? mana!, ri, chora, ri, chora. Ponto. Tarde da noite, decidimos nos encontrar somente na manhã seguinte, cedinho, no meu luxuoso hotel de vinte dólares (toda família tem uma pessoa rica... exceto a minha). Eu a aguardava ansiosa na frente do hotel. Vou de rickshaw,disse ela, aquela moto com cobertura e banquinho pra duas ou três pessoas na parte de trás. O trânsito intenso me deixava atordoada. Queria vê-la logo. Avisto um rickshaw se aproximando e diminuindo a velocidade. O dia estava ensolarado, porém gelado. Seria ela? Vejo um pé. Alías, dois. Reconheço-os. Os pés mais feios do mundo! (provavelmente serei processada após a publicação desta crônica, mas é pura licença poética). Conheço estes pés!!! Agora queimados de sol, e com as unhas mais pretas de sujeira indiana. Era ela! Desce soberana enrolada em mil cangas. O frio a pegara de surpresa. Somente a improvisação a salvaria. Cangas e mais cangas enroladas pelo corpo, cabeça, mas os pés de fora, denunciavam sua longa estadia na praia. Olhei bem para ela. Tudo o que eu conseguia ver eram seus olhos azuis iluminados e cinquenta tons de marrom na sua pele! O que era aquilo, meu deus? Sujeira, sol, poeira, experiência, vida! Depois do susto, um café da manhã improvisado num trailer ali ao lado, comemos uma samosa apimentada e eu tive que engolir umas duas cocas-cola pra aliviar meu paladar afogueado. Minha irmã não me poupou na minha primeira experiência gastronômica. Às oito da manhã, na poluição e improviso da rua. Acho que foi uma espécie de vingançazinha. Um prato que se come... apimentado. Seguimos dali pra Jaipur. Mas isto já e outra crônica. 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Drops Chineses.

            Muito dos detalhes das viagens se perde, infelizmente. Com o passar do tempo, que deixa a memória toda puída e esburacada, ou pelas anotações que são esquecidas, rasgadas, molhadas ou mesmo abortadas pela preguiça momentânea e pela procrastinação. E o que fica, quando muito, são pequenas notas perdidas em rodapés de guias, tickets de metrô, entradas de museus, guardanapos de cafés, folhas soltas sobreviventes da sorte... Ainda há as anotações eletrônicas, nas linhas e entrelinhas de emails mandados às pressas ou com dificuldades de conexão. Estes me salvam ainda, da minha ausência de pragmatismo e da total displicência com a qual registrava minhas viagens por aí. Na China, por exemplo, até que havia bastante oferta de locais que acessavam a internet, mas passada a burocracia inicial de ter que se fazer um registro com o número do seu passaporte, conseguir de fato navegar com alguma velocidade.... era quase uma ironia do destino. Fora o sem número de sites bloqueados pela censura do governo, o que travava a maior parte das buscas e pesquisas. Em uma destas sagas cibernéticas, perdi um email gigante com muitas histórias e mentiras. As mentiras eu me lembro até hoje, mas infelizmente as histórias se perderam. Alguns drops destas histórias estão aqui. Encontrei-os em um caderninho empoeirado que relata exatamente a perda do email... e os aos náufragos drops dou uma segunda chance de vida. 

Lia-se assim:
" No email eu listava uma série de fatos curiosos e bizarros que eu tenho vivido. Vou tentar recapitular:

  • Quatro grilos em uma gaiola - minúscula. O que é mais estranho, os grilos na gaiola, ou o fato dela ser minúscula? 
  • Cachorros em coleiras, porcos em coleiras, gatos em coleira, macacos em coleira. Conclusão: o mercado de coleiras chinês está aquecido.
  • Travesseiros recheados de arroz,ao invés de espuma, na maior parte de hotéis, pensões e pousadas em que ficamos. Dói!
  • Em um hotel, começamos, eu e uma amiga, a enumerar todas as coisas que funcionavam no quarto. Relatório final: somente a cama. Durmamos.
  • As placas com sinais estapafúrdios nos parques, ruas e bibocas chinesas, brilhantemente traduzidos para o inglês, as follows:
  • PLEASE, DON'T STAY! (e o desenho de uma figura humana com uma faixa cortando-a). Ótimo para sogras e chefes;
  • NICE TO LIVE. PAY ATTENTION TO SAFETY. (como são doces, estes chineses?);
  • ONLY URINATE. (no banheiro de um café. Tá, mas como eles controlam isto???);
  • FALL INTO THE WATER, CAREFULLY. (but not suddenly, huh? - em um parque com um enorme lago);
  • STEP THE FLOWERS, AND GRASS NOT! 
Foi bom relembrar. Me dá vontade de ir à China novamente. Todos os perrengues que se vive naquele país idiossincrático valem a diversão! 

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Da luz e dos estados (de espírito - excluído o de porco).

         Visitar um lugar é fácil, basta estar lá. De corpo presente, câmeras empunhadas, aplicativos de celulares baixados e abertos. Talvez ainda um mapa e um guia nas mãos, para os mais old school. Mas creio que para conhecer um lugar, é preciso vê-lo sob várias luzes. E estados de espírito. A mesma estrada ao nascer do sol quase em nada se assemelha a ela mesma, ao meio-dia. As sombras suaves da manhã reforçam a chegada sedutora do astro egocêntrico, enquanto o meio-dia expõe com crueza as imperfeições de cada centímetro do asfalto, das plantas, do entorno. A mesma paisagem muda ao longo do dia. A luz do sol e suas intensidades graduais revelam ângulos, escondem texturas, enfatizam contornos, evidenciam contrastes. Nunca me esqueço minha surpresa ao ver as fotos de uma francesa, de um mesmo parque que visitamos em Pequim. Ela estivera lá em um dia de chuva abundante. Suas fotos dos templos e das construções do parque - semelhantes ao nossos coretos de praças mas com os telhados típicos orientais - deixavam entrever a vegetação exuberante e a vivacidade das cores pelas cortinas que a chuva formava na beira dos telhados ao cair. Não parecia o mesmo parque. O meu registro certamente foi muito mais pobre e objetivo, embora, em tese, um dia de sol supere um dia de chuva. Assim como a luz, os humores plasmam nossas emoções e direcionam nossa percepção do exterior. Uma paisagem estonteante, ao fim de um longo dia de caminhada, doloridos, famintos, exauridos...não causa o mesmo impacto do que no auge da nossa disposição. Existem tantas torres Eiffel e muralhas da China quanto estados de espírito. Uma praia Tailandesa não pode ser tão bela pra quem levou um fora, não? Ou sua beleza tem tons mais acinzentados. Assim foi comigo em Pyingao, pequena cidade Chinesa da dinastia Han, extremamente bem preservada por mais de cinco séculos e onde o sistema bancário começou a tomar forma. Minha tpm estava torturante. Eu estava na China há uns dez dias. Tinha largado meu emprego, minha casa, família e amigos pra mochilar pela Ásia. Eu olhava as primeiras formas de dinheiro e pensava, um lixo. Passeava pelas ruas pitorescas de Pyingao e falava, um nojo. Pensava no quão idiota eu era por ter largado tudo pra estar sozinha a milhões de kilometros de distância. Nada me agradava. Meu azedume era universal. Uma mulher de tpm não vale a passagem que compra. Não vale o dólar que troca. Deveria ser proíbida de sair de casa, e se sair, deve ficar presa na sala de interrogação do aeroporto. Até melhorar! A cidade seguinte voltou a ter sabor de aventura, cheiro de liberdade. A tpm ficou na estação anterior...


Em algum parque de Pequim.



Estado de espírito: beirando o de porco.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Índia, te visito.

      Seriam minhas primeiras férias remuneradas. Carteira assinada, férias registradas, tudo muito adulto, lindo. Eu pensando em me enfiar em qualquer praia cheia de mosquitos e minha irmã, meses antes, prevendo meu rito de passagem para a vida adulta, começou a sovar a minha mente pra irmos juntas à Índia. Quase ninguém ia pra Índia nesta época. Não daqui, do Brasil. Não era moda, tendência, coisa nenhuma. Era sempre cara de nojo, de susto, de dó. Mas lá da Inglaterra, onde ela morava, era trendy. Todos iam e voltavam, e iam novamente, comedores de curry insaciáveis e apreciadores de viagens baratas. Quase gratuitas pra eles. Acho até que voltavam com mais dinheiro do que iam. As libras, de tão fortes, se reproduziam no caminho. Enfim, ela tanto fez que convenceu-me a ir. Eu pagaria minha passagem até a Inglaterra e ela me emprestaria o dinheiro pra passagem de Londres à Nova Delhi. Prevendo um possível calote, ela a comprou de uma companhia bem chinfrim, que faria a viagem tornar-se uma lamúria eterna: Kwait Airlines. O que ainda não foi revelado é que ela havia partido rumo à Índia dois meses antes, e o trajeto foi feito por mim, de Londres à Delhi, na solidão da ignorância dos detalhes que tanto me incomodaram. Voo longo, escala demorada em Bahrein, dezenas de pessoas com tosses intermináveis, crianças chorando, tripulação impaciente com a simplicidade dos passageiros e um cheiro de curry pelo qual eu me apaixonaria tempos depois. Na escala em Bahrein eu era a única mulher vestindo calça jeans. A única mulher viajando desacompanhada. A única bizarrice com uma mochila nas costas. A que valia menos camelos! Crise de autoestima! Mas eu chegaria sã e salva à Delhi, onde minha bela irmã caçula estaria me esperando, sorridente, às 3 da manhã, vinda de não sei onde, somente para me recepcionar! Que regozijo! Que alegria! Mas não poderia estar mais enganada. E apenas um dia inteiro depois de muita aflição, o destino reuniria estas duas incautas irmãs. 
O pouso em Delhi foi qualquer coisa de surreal. Um apagão de dimensões continentais afligia o norte todo da Índia, Nepal, Bangladesh e arredores. Vista de cima, a cidade parecia um vilarejo parcamente iluminado. Luzes fraquinhas e espalhadas na imensidão do breu. Impossível pousar. O piloto começa a dar voltas. Gostaria mesmo de dizer, se pudesse: voltas redondas em círculos bem arredondadinhos... pra se ter noção da sensação que sem tem em voar em ciclos no breu quase total, depois de muitas horas confinados. O denso fog tornava o pouso ainda mais incerto e perigoso. Mais voltas. Pela primeira e única vez na minha vida sobre asas, vomitei. Não foi nada a la O Exorcista. Mas vômito é sempre desagradável e meio deprimente. Quarenta minutos orbitando Délhi e pousamos em segurança. A ansiedade me corroía. O aeroporto estava (mal) iluminado com geradores próprios e esperar na fila da imigração lembrava uma fila em um centro espírita, na penumbra, pra tomar um passe. Flores de plástico e pôsteres de papel enfeitavam as mesas e as paredes da sala dos guichês de imigração. Dezenas de imigrantes de países vizinhos eram tratados com desdém e até mesmo rispidez pelos agentes. Pobres, franzinos, frágeis. Possivelmente em busca de uma chance de trabalho. E eu só queria um abraço, um táxi e uma cama quente. O abraço, diga-se de passagem, seria da minha irmã... e não de um agente de imigração. O frio era intenso. O inverno estava em seu ápice. O corredor para a saída do aeroporto nunca foi tão longo, ermo e escuro... (anos depois eu voltaria à este mesmo aeroporto, já totalmente reformado e menos kitsch). O choque me esperava. Não o choque térmico. O choque de realidade. Um mar de rostos esquálidos, cobertos por panos, cobertores, mantas, observavam a chegada dos passageiros do vôo em que cheguei. Dezenas deles ofereciam táxi, moto, mototáxi, bicicleta, pogobol, patins, beijo, abraço, hotel, pensão, picolé, guia, rickshaw, disco voador, de um tudo. E te puxavam pelo braço. E desequilibravam seu caminhar tonto, tentando segurar a mochila, a mochilinha, o casaco, o que fosse possível. Eu só focava em achar um rosto familiar. Pedindo licença pra outras dezenas de pessoas que, estendidas no chão, buscavam abrigo do frio lá fora e pagavam uma taxa pra dormir no quentinho do saguão do aeroporto. Nada da minha irmã. O quadro de vôos continha dois tipos de mensagens pra todos os vôos: cancelled e diverted. Ou seja, cancelado e desviado. Fer-ro-u. Cadê ela? Já era muito mais que a hora combinada. Sim, eu estava atrasada. Mas... mas... mas... não era culpa minha. Não. Ela não estava lá. Ninguém pra me dar informação. Os seguranças só queriam perguntar de onde eu era e exclamar: Ronaldo!!! Ronaldo a puta-que-te-pariu! Camila! Camila! Minha irmãããã!!! Era primeiro de janeiro. O dia não clareava. O frio era de doer os ossinhos. Exaustão já me nocauteava. O cenário era estranhíssimo e assustador. Ninguém parecia se importar com meu choro e meu pedido de ajuda. Nenhum telefone funcionava devido ao apagão... onde estava Camila? Poderia tentar ligar pra Inglaterra, onde um amigo dela poderia me dar alguma informação... mas sem chance. Alguém acabou por me informar o óbvio. Eu estava em um aeroporto internacional. Ela chegaria de um destino doméstico. Então... talvez eu devesse ir pro aeroporto de vôos domésticos. Sim, ela poderia não ter se atentado pra isto. Talvez eu fosse mais esperta que ela. Hum? Não contavas com a minha astúcia, Camilinha? E pra lá me dirijo, depois de muita pergunta e correria pra tomar um ônibus seboso e capenga que fazia o trajeto entre os dois aeroportos. O fog era tão denso que parecia que segurava o ônibus pra trás. Eu estava drogada? Sonhando? Alucinando? O que era aquela cidade? Eu conseguia ver apenas trechos por detrás da neblina. Trânsito caótico. Gente atravessando na frente de tudo. Animais. Bicicletas, motos, risckshaws, pogobols, patins, palhaços, malabaristas, engole fogo, discos voadores... Eu não estava bem. Precisava dormir. Comer talvez. Chegando ao aeroporto, mais dúvidas. Perguntas sem respostas. Brasil-Ronaldo-puta-que-o-pariu. E choro. Minha ficha caiu que eu nem ao menos sabia de onde ela estava vindo! Parecia tão certo que ela ia me esperar. Fui parar na administração do aeroporto. Tentaram me ajudar, mas eu não tinha informação de nada. Nem eles, na verdade. Dezenas de voos foram cancelados... enfim. Nunca encontraria minha irmã. Jamais. Somente em outra encarnação. Decidi entrar em um táxi e ir pra um hotel. Que hotel, madam? Ahhh, qualquer um, meu filho. Eu não tenho guia, não tenho celular com internet (na verdade, ninguém ainda tem), não tenho informação, não tenho nem irmã... chuif chuif chuif. Me leva pro hotel do Ronaldo que tá bom, queridinho. E o rapaz me deixa em frente a um hotel com cheiro forte de curry e o barulho ensurdecedor de um gerador de energia bem
 na porta. Vinte dólares. O queeeeeeeeeeeee? Tá pensando que eu sou rica? Minha irmã não paga mais do que três ou quatro dólares pra dormir, segundo ela. Bom, já que ela não está e nunca estará... aceito. Subimos, subimos, subimos. Cheiro de cuuuuurrry nas escadas de mármore encardido. Abre-se a porta. Janela de frente pra rua. Ótimo, pois o barulho do gerador iria tirar a prova de que meu sono era absoluto. O rapaz balança a cabecinha, como os indianos fazem, como um não que samba e rebola. Espera a gorjeta. Sorri. Recebe a gorjeta. Balança a cabecinha. Vai embora. Eu deito de roupa e tudo. Cataploft! Janela escancarada pro frio porque já não sinto mais nada... Antes de pensar em tentar ligar novamente pra Inglaterra, dormi e morri. Acordei à noite. Desesperada. Onde estou? Quem sou? Quanto devo? Meu deus, preciso ligar pra Inglaterra urgentemente!!! Não sei quantos dias dormi. Se estou viva ou morta. Ou se o céu cheira a curry mesmo. Nunca pensei em ligar pro Brasil e perguntar aos meus pais porque não queria matá-los do coração. Mas não adianta pensar, quando sua irmã não pensa também... Eles já sabiam do "'meu sumiço"e estavam aflitíssimos. Meu pai já estava prestes a contactar a embaixada pra notificar meu sumiço. Da Inglaterra, nosso amigo Volkan pensou em me xingar, mas percebeu que era mais prático me avisar que minha irmã estava no número tal e era pra eu ligar urgentemente pois a polícia de Délhi estava avisada sobre meu desaparecimento. Mas eu estava lá o tempo todo! Minha irmã estava lívida quando atendeu o telefone! Choramos. Rimos. Choramos. Só. Tá bom assim. Mas rimos muito no final. Ela estava mesmo hospedada num muquifo de três dólares, sem café da manhã, mas com direito a ouvir em altíssimo som o programa Who Wants to be a Millionaire, que deu origem ao filme. E olha que ela não tinha tv no quarto. Mas sua vista privilegiada era um forro de madeira, cai-não-cai, com um ninho de ratinhos barulhentos como inquilinos. Nosso erro foi amador: eu chegaria às três da manhã e ela às três da tarde...
O tapescript da ligação está na caixa preta da cabeça da minha irmã, que narra, palavra por palavra, nossa conversa inspirada em 007: 
Ela, da Índia, em um telefone público devorador de moedas - Mana, fala rápido, quando é que você chega? A ligação tá péssima e tá ficando cara.
E eu, concisamente disse: - Dia tal, às três horas. 
Ela então, pergunta e confirma: - Dia tal, às três, em Délhi?
- Isso. Como é que você vai chegar lá? Avião, ônibus?
- Eu me viro. A gente se vê lá no aeroporto. Ciao!
- Ciao!